segunda-feira, 7 de julho de 2008

Intimidade



Na semana que passou, ao final do dia, perdi-me em busca de uma localidade remota algures na periferia do Porto. Conduzia um pouco à toa, achando que as placas de informação me elucidariam e que a hora de ponta não me atrapalharia. Quando percebi que me encontrava num ponto sem referência dei a busca por terminada e querendo regressar a terra conhecida, vi-me forçada a resgatar um caminho recentemente abandonado que percorria unicamente para encontrar os braços que desejava. Refazer esse caminho, conduziu-me à formulação de pensamentos tontos. Desfilavam no tapete da minha memória os impulsos que outrora me comandavam os passos naquele percurso, os diferentes trajes de desejo com que o corpo se vestia de latejo e palpitação… Aqueles pensamentos magnetizavam aquele local, impeliam-me para aquela casa, “só para confirmar se ela ainda lá estaria”. Avistar aquele carro, confirmando a continuação daquela presença, já descontínua em mim… Prosseguia em controverso colóquio comigo mesma: ir; não ir; vantagens; desvantagens… Até que tu provas, mais uma vez, que as coincidências existem. Tu provas, mais uma vez, que me adivinhas, mesmo sem saberes. Tu resgataste-me desse redemoinho lodacento da memória e atiras-me para um futuro certo e próximo, quente e aconchegante… Peixe grelhado e arroz de tomate cozinhado por ti, para mim?! É claro que quero jantar contigo, só quero jantar contigo…

Tenho resistido à tentação de escrever sobre ti. Tenho tentado evitar depositar as palavras que podem empilhar-se e formar um “nós”. Sim, é sobretudo isso. Parece-me que se não escrever, se não falar do assunto ele não se torna coisa, não assume uma verdadeira existência. E é, tão só, porque me assusta a ideia de perda. Aquela ideia de perda cujo horizonte traçaste com umas, simples, irrepetíveis (quem sabe, até, ocas), palavras. Aquela assustadora e injusta ideia de perder o que não se viveu. Mas, é justamente a viver, a agir, a fazer que temos criado um “nós”, quase sem reticências. Não tenho, nem desejo (salvo em alguns momentos de puro terror de naufrágio) contornar a acção, evitar os momentos, os nossos instantes em que essas palavras parecem um idioma estranho sem qualquer correspondência à realidade. Até agora, a única coisa que pedes é que seja a vontade a ditar a rotina dos nossos encontros: a minha e a tua. Tem sido assim e tem sido tão bom… E foi desse modo que o peixe ganhou cor e gosto, que os misteriosos grãos brancos se imiscuíram crescentemente com a água e o tomate, que o vinho se elegeu para molhar a conversa que entre nós já não cessa. E foi desse modo que esboçamos uma dança quando o Paul Desmond tocava Adeus, que sentamos em uníssono os corpos no sofá e que as mãos se tocaram como faíscas que tudo o resto incendeiam. E foi num rasto de fogo, de terra queimada onde muito mais promete germinar, que nos quedamos na tua cama, como se o meu corpo ali pertencesse e os teus braços tivessem sido concebidos para me embalar até adormecer. Amanheceríamos juntos para um dia comum, para a banalidade que nos preenche e caracteriza no compasso regular e previsível de todos os dias. Enganar o despertador, fintando as horas de levantar, alternar banhos, tomar o pequeno-almoço, fitar-te no elevador e desejar-te: um bom dia… como se todos os dias tivessem sido assim, mas desconhecendo (porque nunca se conhece) como serão os próximos. Quero-te assim também, nessa normalidade idêntica, sem nada de extraordinário, nesse desfiar dos dias que se contam iguais e cujas diferenças apenas se vislumbram através de uma inquietante e rara proximidade, através da frágil teia de intimidade que sem molde e sem planos urdimos sem querer.

Foto: "A inversão do tempo" de Ana Franco.

4 comentários:

Ervi Mendel disse...

O primeiro ponto é que mais ninguém te liga, o que é lamentável.

O segundo é que já me conseguiste baralhar outra vez. O Tutti-Tutti e o J. são pessoas diferentes? Eu gostava que fossem pois sou adepto da pouca vergonha, mas desconfio que não...

Por fim, continuas a escrever maravilhosamente, razão pela qual eu consigo sobreviver a um post onde se fala de Peixe grelhado e arroz de tomate (aaarrrghh!!!)

beijo

Osga disse...

Evita desejos no elevador, ainda acontece como o outro senhor e ficam presos 42 horas! :D

Clepsydra disse...

Ervizinho,

Convenhamos que o fluxo de comentários é mais do que justo, atendendo ao fluxo de posts... tenho andado alheada do blog...

Eu também sou uma militante da pouca-vergonha, mas é uma militância teórica, com pouco substracto operativo, shuif... Tutti-tutti com um J.

Já não bastava a aversão às ervilhas, agora também se acrescenta o arroz de tomate e o peixinho grelhado?!

A escrita é como a cozinha, vai melhorando com a prática e a inspiração. Nem uma nem outra têm abundado por aqui, mas obrigada pelo doce elogio escrito.

Beijo malandrinho (como um bom arroz de tomate)

Clepsydra disse...

Osga,

A adivinhar pensamentos secretos das amigas bloggers?!? Até dei uma vista de olhos pelo já tinha escrivinhado, para confirmar se alguma vez tinha confessado esse desejo ;)

Beijo