segunda-feira, 19 de maio de 2008

O tempo do presente

Um presente transporta sempre consigo uma dedicatória acoplada. Com uma oferenda, estabelecemos uma ponte física entre nós e o Outro: há uma coisa, escolhida, tocada por nós que se desloca até ao toque do Outro, escolhido óbvio do nosso desejo, da nossa vontade, da nossa preferência. A intenção da dedicação está lá também, muda ou em letras capitalmente escritas. Tem de ser medida até à mais ínfima grama: não a queremos inócua e sem significado, mas também não a desejamos traidora, delatora total do delírio em que nos encontramos.

O meu presente foi recebido na sexta-feira e, nesse dia, o encontro deu-se sem marcação prévia, não por obra e graça do destino, mas porque os passos, nesta cidade, tendem a ser decalcadamente idênticos. Esqueçamos a explicação lógica e agarremo-nos à deslumbrante força da racionalidade do destino. Sem falar, sem combinar, estamos aqui, outra vez, no espaço onde a dança do corpo nos juntou. Dançamos novamente… “Tinha acabado de te enviar uma mensagem…” Afirmação sincronicamente confirmada pela vibração sentida no bolso da trás das minhas calças. “Mais uma vez, estou neste antro de perdição e só penso em ti. Só em Ti! Quem me dera estares aqui. Vem ter comigo! Beijos… dos nossos”. E eu, ali estava, antecipando as ordens desconhecidas daquela sms, ainda incrédula com aquela coincidência, mais do que provável…





Fim de festa. Dia aberto na cidade ainda a espreguiçar-se, ainda a esboçar movimentos tímidos e frios. Pequeno-almoço na confeitaria possível, junto ao ícone do burgo. Falamos da coincidência deste encontro. Falamos da dedicatória acoplada ao presente que te havia enviado… Os olhos, agora humedecidos, denunciam o emocionado agrado que ele te causou. A boca, ainda lenta e adormecida pelo álcool, adverte cautela, pronuncia-se sobre “o cuidado” que eu devo ter… O indizivelmente paternalista, “tem cuidado contigo”, costuma servir uma de duas funções: uma vez dito, iliba o emissor de eventuais responsabilidades sobre o que possa vir a acontecer, por outro lado, o cuidado feito voz, não escolhe destinatário, é uma advertência para quem o diz também (não me posso esquecer que preciso ter cuidado).

Seguem-se mais frases habitualmente usadas em enredos desta natureza: “não tenho nada para dar”; “não tenho expectativas”; “não me quero envolver”. Surge a vaga e insuficiente explicação da dor passada, como sustentáculo da postura que se procura consolidar no presente e no futuro. Como se a vida se amordaçasse com os frágeis açaimes que lhe destinamos…

Neste caminho, duas vias possíveis emergem com clareza. Vou ignorar, registar e assobiar para o lado, é a minha história e quem define o argumento sou eu. Escolho a outra e insisto. Eu também não sei o que tenho para dar. A última coisa que procurava e achava que iria encontrar neste momento seria a intenção de me envolver. Mas, eu tenho vontade de me deixar levar, de me deixar ir nesta história, cujo início anunciava precocemente um fim. E não tem sido assim, não é? Então, o que eu te pergunto é o que é que tencionas fazer quando, e se, o momento se dilatar para outros espaços: vais decepá-lo ou permitir que ele cresça, sem agenda e programa definido?

Há uns olhos que me fitam com incredulidade, há um abraço que me ampara o corpo que treme no declive dessa manhã fria. “Ainda por cima, és brilhante, és tão inteligente. Não podias ser uma burrinha qualquer?!”. Sorrio, afastando o embaraço com uma piada transparente: “Tu é que insistes em ignorar as minhas raízes capilarmente loiras”.

Olha para mim, a ser burra que nem um cepo e a dar-te a mão e a puxar-te para o interior do táxi, enquanto anuncio a minha morada. Olha para a torre dos Clérigos que nos observa lá do alto, enquanto se interroga: por que é as pessoas insistem em complicar o que é simples, o que é claro, por que é se refugiam em esconderijos frágeis e armaduras inúteis… A Torre a antecipar-se à minha espiral reflexiva e adivinhar a pena que sentiria por saber que este não é o momento para eu resgatar futuros, junto a quem insiste por decreto, em não descolar de passados e a permitir-se apenas mergulhar timidamente no cálido líquido do presente. A Torre a lamentar, antes de mim, que não me apeteça lançar-me nesse longo e potenciamente infrutífero empreendimento demonstrativo de que 1 e 1, também podem ser 3...

Foto: Paulo Pimenta

4 comentários:

Kitty Fane disse...

Lindo, lindo o post. :-)

Ervi Mendel disse...

Eu prefiro usar o telemóvel junto aos genitais e não no rabo, facto que, indubitavelmente, torna a minha vida muito mais simples....

SK disse...

Normalmente tudo tem génese numa marca. E essa marca pode gerar inconscientes. Actos quase reflexos.
Aos "descontruídos" apavora a construção. Quase sempre.

Excelente texto :)

Clepsydra disse...

Obrigada, Kitty. Menos bonito é o que fica depois do post, que é quase nada, quando podia ser muito mais...

Ervi, tomei nota da sugestão. Tentarei transferir a vibração para outros domínios...

Stephen, aos que, em esforço, se reconstroem diariamente, às vezes, apavora o pavor alheio... Quanto mais não fosse, porque esse pavor é cimento e dinamite da reconstrução que se ensaia.