segunda-feira, 28 de abril de 2008

Tempo de pausa, sem ócio

Ai as férias! Já deviam ter começado na quinta-feira. Contudo, eu, que juro a pés juntos ter o espírito do pior funcionalismo público cravado em mim, com a força e a convicção de um casaquinho de malha pelas costas e um porta-moedas debaixo do braço, sucumbi à culpa de um projecto não concluído (por responsabilidades terceiras) e hoje ainda vim dar o ar da minha graça à chafarica. Mas, agora, sim: as férias. Não vou dizer “finalmente”, porque não são essas vacaciones (de sol, praia e papo pó ar). São “aquelas” em que, durante duas semanas, me entranharei num fato de treino de algodão, descobrindo a sopeira que há em mim, e me fecharei para o mundo para acabar a merda da tese.
Até lá, estes tempos ficam aferrolhados e sem hipótese de fuga.

Deus, afinal existes e guias um bus!

E se as sete da manhã de sábado fossem presenteadas por uma sms de uma quase desconhecida, bradando:
“Boizola, é o meu motorista! Deus, afinal existes e guias um bus!!!”

Os festejos do 25 de Abril no Porto são cada vez mais deprimentes. A última vez que assisti ao entoar da Grândola na Avenida dos Aliados foi há dois anos e, desde então, pensei “enquanto me lembrar disto assim, não torno cá”. O (inevitável) Coral de Letras, uma aparelhagem sonora muito rafada e uns grupelhos de resistentes dispersos e tímidos. A partir desse ano, privatizou-se (irónico, não?) a festa que, normalmente, dá lugar a jantarinho em casa de amigos. Sexta feira lá se fez a jantarada.

Fiquei contente com a ideia de (aparentemente) irem pessoas novas. A partir de uma determinada altura (não vou dizer idade, humpf!) é difícil renovar as águas paradas da sociabilidade e, portanto, alegro-me sempre que essa ténue possibilidade espreita. Rapidamente se esvaiu tal cenário. “Então, quem é que vem? Ah, é o não-sei-quantos? Hum, conheço, foi meu prof na faculdade. E a fulaninha? Pois, sei quem é. Era a namorada do cicraninho que fazia parte da Associação de Estudantes”. Enfim, anátemas de uma cidade que, às vezes, mais parece uma junta de freguesia.

O M. foi meu professor numa cadeira de primeiro ano da faculdade. Mas, é um gajo novo, de esquerda e mai-não-sei-quê, maneiras que findo o 1º ano (brindado com 17 – avaliação que lhe deve ter criado a ideia que eu tinha dois dedos de testa) a gente sempre se tratou por tu. É bom moço e, no contexto do jantar, lá veio o tradicional preâmbulo da conversa, “então e como é que andam as coisas?”. Rapidamente, começa a expor a sua argumentação sobre o estado de sítio em que a instituição Universidade se encontra, a mercantilização dos seus propósitos, o governo, a globalização… Eis que, no meio da sua elucubração teórica, penso imediatamente no L. (amigo, com A maiúsculo) que nutre idêntica simpatia e fulgor oratório pelas temáticas. E eu, achando-me a miss match maker lá do sítio vai de o meter ao barulho:“Oh L., então o que é tu achas do modelo fundacional das universidades? Aqui, o M., estava dizer-me que blá-blá- blá?”
É assim, a coisa até podia ter corrido bem, mesmo muito muito bem. E não estou a entrar no raciocínio linear do “já que ambos nutrem simpatia por espécimes do mesmo género, porque não?”. Não, eu fui além desse pensamento rasteirinho. De repente, parecia-me que 1 e 1 só podia ser 2: são ambos solteiros, são gajos atentos aos que se passa no mundo, gostam de falar e de discutir essas situações, são de esquerda, logo isto pode correr bem. Colossal equívoco de análise. A conversa começou a descambar logo de início. De facto, ambos gostam falar das mesmas coisas, mas, nem um outro, nem outro, é particularmente dotado para ouvir sobre esses mesmos assuntos. Especialmente, ouvir posições diferentes, porque originárias de pólos (de esquerda) diametralmente opostos. Maneiras que a amena conversa degenerou em drama queen que, por pudor social se arrefeceu, mantendo-se, contudo, a faísca das leves bocas, cuja força crescia à medida que o vinho soltava as línguas.

O jantar acabou tarde (5 da manhã é tarde para um jantar), mas ainda estávamos decididos a ir dançar. Pusemos pé ao caminho e, nessa senda, fomos perdendo companheiros da luta do baile que, cobardemente desertavam em táxis. Fiquei eu e o L. no antro do (quase) costume até o dono nos expulsar amigavelmente.

Portanto, rumamos à paragem de autocarro. Rapariga bem mandada, opto por não conduzir, sempre que bebo. Rapariga mais preguiçosa do que bêbada, geralmente, prefiro não beber e poder conduzir. A última vez Baco venceu a Preguiça foi no último dia de 2007, brindado com a descoberta da divindade dos transportes púbicos: Buseus, de sua graça. Eu e o L. achamos que era um presságio do que 2008 nos traria. Ora, qual não é nosso espanto quando às 7 e 20 da manhã, o autocarro do L. se aproxima da paragem, abre as portas e tcharam: lá estava ele. Lindo, loiro, fresco, no seu posto de motorista zeloso, com um sorriso que ofuscava de tanta beleza.

Já muito embalados e etilicamente desbocados, não contivemos o riso cúmplice. O L. entra, senta-se logo no banco da frente e eu atiro com um:
Moi - Ai, eu se calhar vou no teu autocarro que o meu nunca mais vem...
L. - Ah! a que horas é o teu?
Moi - É agora, mas os senhores nunca cumprem...
L. - Ai não, não cumprem. Os senhores cumprem, não cumprem?
Buseus - (entre risos) Sim, nós cumprimos. Deve estar aí mesmo a chegar.

E puff, lá foi ele. Razão pela qual se seguiu a minha mensagem, incompreensível, fora do seu contexto (e mesmo com ele…). De modos, que há um Luís (que recordo vagamente), rapaz apresentável, dotado de massa cinzenta, que (por razões de timming) estava em stand by para quem-sabe-um-dia que deve achar "olha aquela rapariga que eu até achava sensata e quem-sabe-um-dia, afinal não joga com o baralho todo..."

Não Esquecer - Escrever ao Provedor do Cliente. Felicitar pelos critérios estéticos que presidem à política de recrutamento da empresa. Sugerir que os contactos telefónicos e as fotografias dos colaboradores sejam disponibilizados na página web, com vista a uma maior proximidade e humanização do serviço prestado ao público.


Foto: Pedro Correia in Jornal de Notícias.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Mal dizer (literalmente)

A propósito da dança de cadeiras do PSD, um querido amigo partilha comigo a recusa opinativa do senhor presidente da república:
"Há uma coisa que um presidente da república nunca pode fazer que é comentar, em público, a vida dos partidos políticos. Nunca o fiz, não faço, nem façarei."
Eis como (com ou sem acordos) se conjuga um novo futuro!
(disponível em versão audio em

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Feito por medida

Tal como o governo, em tempos de crise, corto com as despesas da rubrica Coisas-Culturais-Sem-as-Quais-Ainda-Assim-Consigo-Respirar. O meu orçamento segue, actualmente, um plano de Corpo Danone e exclui as excedentárias calorias das despesas dos concertos. Foi obrigatório abrir uma excepção para o concerto dos Portishead (10 anos de fome mereciam uma iguaria). Será igualmente imperativo interromper a dieta para receber Celso Fonseca, no dia 21 de Maio, no Cinema Batalha.

Tenho, há muitos anos, um caso de paixão assumida com muita da música que atravessa o Atlântico e que aqui desagua, num português cantado com açúcar na boca.

Descobri o Celso Fonseca em 2002. Trabalhava em part-time na loja de discos do aeroporto. Agora, não sei como é que aquilo anda, mas, na altura, era um verdadeiro apeadeiro. Pouquíssimo voos, menos vendas ainda. Portanto, ocupava as horas a ler, a descobrir música e a enxotar os poucos clientes que lá se atreviam a entrar. Foi aí que percebi uma (des)orientação vocacional: nunca na vida poderia depender de uma função comercial para comer.
“Oh menina, vou levar este. Mas, aqui é mais barato, não é?”
“Ehh, olhe, nem por isso… Se vai para Lisboa e não tem pressa, veja na Fnac” (o que é que eu havia de dizer?!?)

Lá, no meio dos discos e da minha gerente brasileira, encontrei-me com Juventude – Slow Motion Bossa Nova (disco de 2001, gravado em parceria com Ronaldo Bastos). Marcado por um dos acontecimentos mais tristes que já me assolou (sobre o qual, curiosamente, passam em breve 6 anos), para mim, 2002 foi annus horribilis. Esse disco, que fala do encontro, do amor, da partida e do desapego (e de uma estadia em Espanha, T., parece uma música feita para nós, meu querido), esse disco foi uma das bonitas flores que, nesse ano agreste, ousou despontar. Esse disco ofereci-o, pelo menos, a 4 pessoas. Há um prazer que cresce como uma manhã com sol, na partilha do que se ama, com quem se ama.

2002 passou-se e 2003, que chegava prenhe de promessas e de esperança, revelou-se estranhamente estéril e sombrio. Em momentos de desapontamento e de desilusão com os outros (ou melhor, com alguns-outros), procuro alimentar a (infundada, claro está) mitomania do estou-sozinha-e-não-preciso-de-ninguém. Desafio-me com inofensivos Himalayas, cuja aprendizagem em escalada solitária imagino vital. Foi assim, por exemplo, com o cinema, situação que, durante muito tempo, só imaginava acompanhada. Hoje, confesso que é coisa que nem me ocorre – o que às vezes me traz dissabores, “atão foste ao ciné e num dizes nada?”. Foi assim com o hábito de estar sozinha em cafés. Aliás, acho que comecei a fumar um pouco por isso, para tentar driblar o desconforto da situação (estava feita se fosse agora…). Ainda há muita montanha para escalar (teatro, bares, discotecas, férias…).
Abalançar-me sozinha para o concerto do Celso no (extinto) Hard Club, na ribeira de Gaia, foi também uma montanha social alcançada (serra, vá… monte, ok… pronto, era um só pequeno degrau). É patético, bem sei, mas, na altura, chegar lá e estar sozinha num espaço e num contexto que, no mínimo, pedia um par, foi assim uma pequena vitória.

O concerto era minimal: o Celso (que é um homem assim a fugir pó feiinho, com as suas calças de ganga com 2 anos em cima e umas sapatilhas que já levavam 4) e, claro, o seu violão. Mas, nada mais era preciso para planar naquela voz doce, morena e sublime. Na deliciosa “Feito prá você”, normalmente, é a Jussara Silveira quem o acompanha. Como ela não estava, (com certeza, para desespero de quem se encontrava ao meu lado) fiz um dueto com ele, cantado assim em jeito de oração pelo despontar do momento em que se decreta o fim da solidão, porque se descobre um braço esculpido para encaixar com perfeição no entalhe da curva do nosso pescoço, um braço que grita fui feito prá você...

Onde vai parar, o que o amor vai me fazer
Vai me embriagar, chega a doer de tanto bem
Quando estou feliz, me acostumei a solidão
Chega um novo amor, me desmantela o coração

Hoje eu sei do cor o que o amor vai me trazer
Se me faz sonhar depois me acorda prá viver
Vive prá me dar a ilusão de tudo ser
Tenho a sensação de que fui feito prá você

Foto: Celso Fonseca, por Priscilla Franco
(bonito, bonito era isto ter um botãozinho para ouvir a musiqueta, mas ainda sou uma analfablogobeta... Fica o link :

terça-feira, 22 de abril de 2008

A chuva que molha tolos e todos



Detesto a chuva. Ainda mais, detesto a chuva como pretexto fácil para infringir a regra do silêncio confortável que a custo se procura manter, quando o abrigo se busca no meio do dilúvio.

Anónima - Será que não nos vai largar? (olhar vago e perdido na água que pinga)
Moi - Ehh, há-de largar, há-de largar…
Anónima - Será que nos larga no 25 de Abril?
Moi - … (no 25 de Abril, pensei?!?Será uma resistente nostálgica?)
Anónima - Podíamos ter rosas, em vez de cravos. São mais bonitas...
Moi - … (ehh, ok, aqui não pensei nada)
Anónima - Eu não sou contra, nem a favor. Só sou contra aqueles que morreram, lá… inutilmente (intensifica o olhar vazio e aponta com queixo para "lá").
Moi - (precipitadamente ajuizei uma opinião que pedia resposta) É sempre inútil morrer em guerra... (com esta frase feita à medida achei que rematava o convívio)
Anónima - Humpf! É sempre inútil! Ainda por cima para deixar tudo àqueles, àqueles...
Moi - .... (Eu bem me parecia que me tinha precipitado. Mas, por que é que não me calo?!?)

Eu detesto, mas é que detesto até à última molécula do meu ser, todo e qualquer pingo de chuva. E não me venham com a conversa da minha avó, “é bom para a terra e para as culturas”, porque a única coisa que eu planto em vasos (na ausência de cinzeiros) são cigarros mortos. Grrrrrrrrr…
Foto: S/T, Luís Zilhão

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A sedução da circunstância III

A confirmação do nosso encontro foi cronologicamente antecedida pela necessária preparação que a possibilidade desse acontecimento exigia. Na ausência de intimidade e do filtro protector do afecto, as pequenas manchas não têm lugar. São nódoas observadas à luz branca e crua da retina, são defeitos sem história, são pontos sem lastro que, sem clemência, se julgam. O ritual de preparação, da apresentação do eu ao outro, é, assim, um conjunto de actos sequenciados, comandados pelo prazer egoísta da dissimulação. Quero-me desejável, ao olhar nos teus olhos, encontrando o reflexo que me pertence e que espero que me seja devolvido. É nesta ânsia que a pele se alisa e perfuma, que, com especial cuidado, os cabelos se lavam e penteiam, que as unhas se moldam como pequenas garras, que as peças de lingerie, assentes no corpo, finalmente se encontram, casadas com um ente da mesma cor e espécie. A alegria da festa começa, assim, bem antes, forçando o corpo a um estágio antecipado do prazer que se adivinha.

O dia passou com paragens frequentes nas imagens desfocadas de ti. Forçava-me a desenhar-te a face, mas as tuas feições teimavam em permanecer ocultas. Recordo com facilidade os nomes, mas não consigo guardar os rostos (a miopia sem óculos que me acompanha deve ter algo a dizer sobre isto). Procurava alinhar as outras pistas que tinha sobre ti. A textura das tuas mãos? Disso, eu recordava-me. Mas, o que é que indicava? Em que se ocupariam elas nos dias comuns? Não sabia. Nada sabia de ti e queria que esse estado primitivo de ignorância fosse preservado até ao limite possível da sua pureza.

Saí do trabalho sem pressa e, desprovida de um sentido de orientação geográfico operativo, lancei-me na confusão labiríntica do concelho peri-urbano da tua morada. Tinha decidido que não me faria anunciar com um ridículo telefonema em que afirmasse estar perdida. Portanto, foi já com a luz do fim do dia sumida entre as nuvens e acompanhada da chuva que, tal como eu, persistia na sua tarefa, que me encontrei no ponto certo. Deixei o carro e ensaiei o passo em direcção ao número da tua porta. Agora, só agora, a inquietação e o nervosismo se faziam coisa pesadamente depositada no estômago. Aligeirava-o com o exercício habitual de racionalizar a vida e as suas opções.

A campainha tocou. A porta da entrada abriu-se. O elevador avançou para o primeiro andar. No meu lado esquerdo, uma nesga de luz denunciava uma porta entreaberta para me receber. Segundos, não mais do que isso, foi o tempo que ambos tivemos para processar a informação do exame visual que decorria. O resultado seria imediato e eu, tentava adivinhar a posição da minha avaliação na tua escala. (Acho que passei… Tu também não estiveste nada mal.)

Chegada ali, já havia pago a portagem que me permitia transpor a soleira da tua porta. Tinha decidido nada dizer, mas traiu-me a sofreguidão e o desconforto miudinho das situações não dominadas. Não resisti a escudar-me ridiculamente num “não foi nada fácil chegar a tua casa…”. Sorrias, nervoso também, “Imagino que não…” Estancava-se aqui a corrente de civilidade. Podemos falar do tempo, mas do nosso, da tempestade que nos percorre e que ameaça desabarmo-nos.

Ensaia-se a medo um recomeço. Onde é que havíamos ficado mesmo? Onde é que eu tinha deixado as minhas mãos? Onde é que me esqueci do beijo? Sim, foi aí, e aí, e ali também. Como se os dias e as noites não nos tivessem afastado, retomamos a dança, agora, sem música. Recomeçamos essa conversa perfeita que nunca teve palavras. Senhor da pista, conduzias-me por corredores incógnitos, cujas paredes eu tacteava para não me perder no frágil equilíbrio que tentávamos manter. Fomos desaguar ao quarto onde se entranhavam alguns pormenores daquele espaço, preparado por ti, para aquele tempo: um cheiro cítrico e fresco, a luz franzina e esguia das velas, a cama feita com rigor… (afinal também te preparaste, pensei…)

Sem palavras, libertamo-nos das roupas. Sem roupas, libertamo-nos da pele. Éramos bolas de desejo concentrado, corpo em carne viva, que se ateava e inflamava mesmo em movimentos mínimos e meros sussurros. Achei graça ao teu diluído esclarecimento de músico que, intuindo um público ignorante da partitura, se apressa a travar aplausos no fim do primeiro andamento. “Aplaude-se no fim, menina”. O concerto continuaria animado pela vontade férrea de me ver ora rendida, ora combatente sem tréguas face a ti. Tal como num concerto, impõe-se um intervalo em que outras capitais necessidades se satisfazem. Morder alguma coisa? Matar a sede? Fumar um cigarro? A pausa é também o espaço de sociabilidade por excelência No intervalo, vestimos a palavra e agora, sim, mais cobertos e compostos, emerge o desconforto da conversa que se força e do nada tem de brotar. No amplo salão do verbo, éramos crianças descoordenadas e trôpegas que, a custo, ensaiam um passo. Primeiro um pé, depois o outro, agora, o entusiasmo deslumbrado do movimento com mais rapidez para, em seguida, nos espalharmos ao comprido num silêncio duro.

“É tarde, acho que vou andando”, disse, esperando que assim se findasse a pausa social. “Podias ficar mais um bocadinho…”. “Mais um bocadinho? Pergunto, enquanto me desconjunto de novo no teu colo… É, mais um bocadinho, então… Até se acender a luz e olhar em volta. Até ser hora de recolher as ruínas e abrigar o corpo nos despojos da roupa confusa que o chão oferece. Mais um bocadinho e chego a casa. Mais um bocadinho e desconfio que, de uma forma ou de outra, voltaremos a alinhar-nos, renovando as teias de perpétuos círculos de sedução que ora se ateiam, ora se extinguem. Mas, agora estamos por nossa conta. Somos nós e não a circunstância. Começas tu?

Foto: Sonhos de Sal de Paulo César


sexta-feira, 18 de abril de 2008

A sedução da circunstância II

Convalescendo da súbita e intensa proximidade, injectei a devida distância entre nós. Dirigi-me à porta, buscando o ar, que me exercitasse os pulmões, e um caminho, onde um outro passo se insuflasse. O teu sorriso barrou-me a saída. Intercepta-me a tua repetida rejeição do “Não”.

Detenho-me nesse instante que há anos me intriga e fascina. A (intrinsecamente masculina?) capacidade de, a partir dos “Nãos”, improvisar degraus e construir escadas, por onde se esgueira e eleva a vontade. Onde se aprende a ouvir “não” e ainda assim prosseguir? Em que bancos da escola foi matéria leccionada essa indomável persistência? Em que manuais se explica e se ensina a resolução das quotidianas equações potencialmente elevadas à recusa?
Fascina-te?
Sim, deslumbra-me isso em ti, e em ti, e no outro e naquele… Essa hábil arte de contornar, de ignorar, de insistir, de reescrever essa palavra que com N tudo finda e, no entanto, onde tudo pode começar. Porque eu sucumbo quando apenas a intuo. Porque vacilo se apenas lhe imagino os contornos. Parece-me tão grande, tão pesada… Onde é que a ponho? Onde é que a guardo? Onde é que a escondo, uma vez que me embaraça? Um “Não” é desmedido e colossal. Portanto, admiro todos os que, dispondo apenas de uma discreta algibeira, generosamente se oferecem para o albergar.

Ainda ofuscados, os olhos tocaram-se pela primeira vez. Ocorreu-te que sou mulher e que, agora, banhada em luz e discernimento, caíra no desempenho funcional do meu papel: tímida, recatada, pudica, falsa virgem à procura de um véu.
“Então, pelo menos dá-me o teu contacto. Amanhã podíamos combinar um café… ou assim…”.

“… um café ou assim…” – pensei. É impagável o vértice de sociabilidade que se deposita e se bebe em tão pequena chávena…

“Está bem.” Tinhas agora um nome e uma combinação numérica que accionei, para que se desbloqueasse também o meu anonimato. O meu telefonema a escassos centímetros de ti e um emaranhado de números e piscarem digitalmente no teu visor… “Chamo-me Clepsydra. Se amanhã, ainda tiveres a mesma vontade, então, liga-me.”
E com uma rara agilidade felina saltei dos teus braços para o parapeito da minha janela, enrosquei-me numa cesta, embalando a volúpia ainda desperta.

O dia seguinte passou na velocidade e nos rituais com se escreve Domingo. Destoava a ridícula e inflamada inquietação adolescente que ausência do teu contacto produzia. Teria a tua vontade desvanecido nessa manhã limpa? Não era relevante. À noite, a minha ainda ali estava, acicatada e viva, convidando-me a um novo papel. Sejamos predadores e entremos no jogo… Não há? Então, inventa-se…:
“Um dia destes, apetecia-me retomar e completar o ponto em ontem ficamos…” (sem perguntar, só afirmando – truques baratos de quem ainda não aprendeu a deixar espaço no bolso para guardar um Não…)
“Passei o dia todo a pensar nisso e agora ainda fiquei com mais vontade. Um dia destes, por mim já amanhã, quando quiseres…”

Agradou-me… A resposta pronta. O sim apresentado em palavras completas e frases que se alinhavam com pontuação - não posso evitá-lo, em tempos de xx’s e kk’s, comove-me o domínio (ainda que rudimentar) da língua. A ausência da despedida, habitualmente servida de bjos e jinhos e jocas... Surpreendeu-me agradavelmente a tua imediata compreensão do jogo sem regras que te propunha.

Um dia destes, irrompeu numa manhã com sol: “e se um dia destes fosse hoje?”. Brindaste-me com o que achavas que eu consideraria adequado, com o que pensavas que teria faltado na noite em que a dança nos juntou. Expliquei-te, “num bar, nós já nos encontramos. Hoje, pensava num espaço mais recatado… “ Novamente em jogo, “Então, vem ter a minha casa. Rua (perdida algures entre tantas outras, n.º xx). A partir das 19 horas estou lá. Aguardo-te ansiosamente.”
“Ansiosamente, chegarei lá. Até ti…”


Foto: S/N, de Luís Mendonça

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A sedução da circunstância I

Já era tarde, muito tarde. E a noite, para surpresa e agrado de todos, tinha-se feito alegre, vibrante e ritmada. Os anos 80 destilavam vapores intensos, recordando a memória de letras que já se julgavam esquecidas. Os amigos iam cedendo ao cansaço e ao peso etílico que as garrafas vazias haviam depositado no corpo. Ainda assim, o chão teimava em permanecer frenético, rodopiante e escorregadio. Quase certa do meu isolamento, abandonei a vista, enquanto os olhos se cerravam. Ficava só a música, ficava só o corpo.

A tua silhueta, camuflada pelo som, pela intermitência das luzes e das sombras e pela minha (deliberada) distracção, encontrava-se ali, como um astro, em alinhamento cósmico com a minha votada solidão. Não foi imediato. Ainda à distância, a percepção que um do outro tomávamos e a consciência partilhada das engrenagens desse processo dilatou uns instantes, preenchendo o momento. Consumado o conhecimento, plantou-se o leve e doce desconforto da confissão assinada da corte. A comunicação feita coisa, feita matéria, inegavelmente vertida em forma moldável para a receber, nascia ali. Ainda ténue. Ainda tímida. Sempre ambígua...

A distância encurtava-se, porque os corpos agora soluçavam a uma só voz, a do nosso (possível) entendimento. Os joelhos faíscam quando se tocam, ainda sem querer. Os dedos roçam-se em coreografia sem ensaio prévio, mas com passos sabidos de cor. Eu não recuo e tu também não. Repetem-se os toques. Improvisam-se avanços. O espaço some-se no encaixar das nossas pernas. Perfeitas, como peças desenhadas desde o início para tal fim. A tua mão descobre a depressão da minha cintura, fincando-se na fronteira da minha anca. Ainda é leve e inofensiva. Aos poucos, ditará a sua sólida deliberação, acercando-me ainda mais de ti. Estamos agora prensados um no outro, reféns do teu desejo firme que me busca e que eu acho, com uma vontade que te engole entre as minhas coxas.

A linha do teu queixo revista-me a curva do pescoço. Encontra o arrepio em fuga, mas prossegue, mandatada por uma autoridade que nos escapa. A respiração encontra-se agora próxima, visível, incontornável. Mas os olhos permanecem fechados, votando na reeleição da magia e da ilusão. Poder ao demiurgo que nos comanda, accionando os fios invisíveis do desejo. Tacteia-me os lábios, invade-me sem pedir permissão e faz-me refém do teu beijo e raptora da tua vontade.

Ainda há as mãos… As minhas mãos são o elemento mais insubordinado do corpo, presas por um receio sem nome, por um pudor sem sentido, recusam acatar a ordem de te tocar. Contrafeitos, os dedos vasculham-te a nuca, emaranhando-se no teu cabelo sem cor. É nas mãos que se encontra a resistência! É com elas que, aos poucos, e a custo te afasto... São as mãos que agora me articulam a boca, depositando as palavras que espalharei nos teus ouvidos: ”... desculpa, mas acho melhor ir-me embora…
Foto: S/N, de abrito
(to be continued... as it was)

quarta-feira, 16 de abril de 2008

A adoração dos meninos

Os estudos (sim, esses todos que comprovam o que vou dizer) demonstram que o sono é muito vantajoso. Eu já suspeitava (sim, porque alguns estudos tendem a comprovar tautologicamente o que já se sabia) e, como tal, respeito-o e ele a mim. É uma relação muito antiga que, com aviso prévio, se consuma invariavelmente na cama. Sem grandes preliminares (é chegar e dormir). Sem grandes inovações kama-sumátricas (barriga para baixo, sempre). Eu e ele somos criaturas de hábitos rígidos (sempre sem almofada). Não temos hora marcada, nem nos aborrecemos com isso. Ele confia em mim e sabe que eu regresso sempre. Eu não temo a sua ausência e confio que ele chega sempre sem demora.

Recentemente, há um terceiro elemento que teima em se intrometer. É o pré-sono e tende a acontecer no sofá. A carne é fraca e, às vezes, sucumbo à tentação de lá ficar. O dia seguinte é acompanhado de arrependimento e de uma pesada culpa, que se faz sentir com particular acutilância na zona lombar. Em acto de contrição intermitente, repito: nunca mais, não volta a acontecer. Mas volta, porque o sofá é matreiro, sedutor e fácil.

Ora, quando durmo no sofá, os braços de Morfeu deixam as suas marcas na minha memória. Imagino que devo sonhar todos os dias, simplesmente não me lembro, excepto quando desfaleço no sofá…


Eu, assim, do nada estava grávida (bom, não era bem do nada, era mais de um recente casual-nada). Eu decidia ter a criança. O meu pai ficava muito contente com a sua filha mãe solteira (!!!) e com a sua condição de avô. Por seu turno, a minha avó fazia-me festas na cabeça e murmurava, “olha filha, tudo se cria, tudo se cria”. Num processo muito asséptico (menos mal, porque um sonho neo-realista eu não suportaria!), eu lá tinha a criança (em pé?!) e ficava muito admirada porque não tinha doído nada. Eu amamentava-a e fica novamente admirada porque não tinha doído nada. Eu olhava embevecida o meu/minha mini-me que não chorava e só sorria…

Eu, felizmente, acordei… alagada em suor e estupefacção.

Bem sei que, de há uns tempos a esta parte, alguns dos meus amigos e conhecidos decidiram apostar nesse empreendimento de longo prazo que consiste em procriar. Mas, à minha inicial alegria face à comunicação da notícia, têm-se contraposto sucessivos desgostos, porque vejo esses amigos e conhecidos a esvaírem-se no ralo da paternidade. O mundo é colocado entre parêntesis e de um só fôlego engolem o papel de mãe/pai que agora desempenham.

A criança ainda não nasceu e já a conversa é totalitariamente absorvida pela projecção do dia em que tal venha a acontecer. Onde é que vai ser? Na clínica, na maternidade, no hospital, em casa à moda antiga? Como é que vai ser? Com epidural, sem epidural, cesariana, natural à moda antiga? Depois, nasce e, então, o deslumbramento é tanto que o resto do mundo é açambarcado na narrativa que repetem, à laia de pioneiros que pisam Terra Nova (e pisam mesmo, mas antes já muita gente lá esteve, né?). Nesta odisseia ganham foros de assunto de Estado problemas como a cor do cocozinho e da ranhoca, a idade certa para lhe darem um irmãozinho (aqui a doutrina divide-se abissalmente; uns defendem o logo a seguir, outros advogam um período de pousio), a prospecção de infantários e colégios, lembrando-se da casa dos tios em Coimbra (no caso de ele/ela ficar lá estudar, quando entrar para a Universidade).
Com os putos ainda de tenra idade, mas já mais crescidos, os pais tentam retomar uma suposta vida social e arriscam-se com a criatura em espaços públicos e semi-públicos. Aqui, já testemunhei comportamentos de crianças e, sobretudo, temeroso, cobarde e irresponsável, anuimento de pais anónimos que me arrepiam dos pés à cabeça. Custa-me quando isso é protagonizado por quem conheço e que igualmente criticava tais posturas. Desde logo, “é muito difícil sair de casa com eles”, é o carrinho, é o coque, é as fraldas, é o leite, é o robocope, é o playmobil, é o Noody, mais o c******. Depois, uma vez à mesa, é ponto assente que a criança tem de se distrair, ou melhor a criança tem de ser distraída. Mobiliza-se, assim, a corte de bobos… quer dizer, adultos nessa adulação por turnos ao rei… quer dizer ao puto. Eu não peço que uma criança se comporte como um adulto, mas exijo que um adulto (sobretudo, se meu amigo) não se comporte como uma criança. Ficam muito chocados com as críticas, alguns exclamam: “ah! Não gostas de crianças?”. “Não, não gosto de crianças, tal como não gosto de adolescentes e não gosto de velhos. Gosto de algumas crianças. Dificilmente, de alguns adolescentes. E, cada vez mais, de alguns velhos!”

Puff, much better! Tive algum receio da bruma delicodoce (sim, admito) em que o sonho me envolveu, por isso precisava de destilar um contraponto, em modo concentrado, de bílis e fel.
Foto: "Para esperar sentado" de Nuno Rodrigues.
Pintura: "La adoracion de los magos" de Pieter Coecke van Aelst (acho eu...)

terça-feira, 15 de abril de 2008

Caimão: o teimoso regresso

Enquanto uns e outros brandem infundadas (espero eu) ameaças lusitanas, como "estou de regresso", não muito longe daqui, a intimação concretiza-se... e regressam mesmo... e com maioria absoluta (!!!!)
É costume dizer, "com o mal dos outros, posso eu bem". Porém, neste caso, compadeço-mo antecipada e solidariamente pelos nossos fratelli.
É caso para dizer Forza Italia (que bem vão precisar)...

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Desmemorizando

Dizem-se aquelas coisas de circunstância perante uns provectos 80 anos, "ai quem me dera chegar lá"! A minha avó chegou lá no sábado. Este ano, ela ainda consegue saber que lá chegou. Em discurso telefónico, transporta a confusão cronológica de histórias repetidas, com pormenores trocados e personagens anónimos. Responde às correcções quotidianas, dos nomes das coisas e da ordem dos gestos, com um humilde (e quase envergonhado) "eu sei, filha, eu sei". E o pior é que eu acho que ela sabe aquilo que todos nós, família mais próxima, sabemos: inexoravelmente, a memória definha e a "minha avó" desaparece aos poucos...
É uma forma de demência devida à morte das células cerebrais que começa por aniquilar a memória e, subsequentemente, as outras funções mentais, determinando completa ausência de autonomia.
Foto: "O sentir das presenças I", de joãoveríssimo

sexta-feira, 11 de abril de 2008

(desen)laços

É, muito provavelmente, um problema meu. Será, muito provavelmente, um problema que tão cedo não irei resolver.

Comparativamente à população que me rodeava, aderi muito tarde ao uso do telemóvel. Achei, durante muito tempo, que era uma moda e que iria passar. Puro, duro e redondo engano. Veio, instalou-se com modos senhoriais, e instituiu um modo de governação muito próprio, que perpassa as mais diversas esferas da vida. Deixei de estranhar a cobrança que bate à porta sempre que uma chamada não é atendida e sempre que, inevitavelmente tendo ficado registada, não é devolvida no tempo sentenciado como justo e certo. Contudo, ainda não assimilei esta terra-de-ninguém-não-protocolada das sms. Eu até acho graça ao exercício de escrita, onde as palavras adquirem outra forma, alinhando-se com outro ritmo e novas disposições afluem por caudais diversos. Mas, para mim, decretei funcionalmente o uso desse tipo de mini-mensagens. As sms servem o propósito de transmitir recados (“chego às não sei quantas horas”), colocar perguntas de resposta simples (“sempre vais ver o jogo ao café?”), jogar com outras pedras num possível tabuleiro de sedução (“vi-te e estavas linda…”), partilhar alguns estados de espírito (“penso em ti…”). Nesta prosaica e tabelada utilização não cabe o esclarecimento de possíveis mal-entendidos. Pelo contrário, acho que as sms têm a propriedade de os gerar, bem como de os agudizar.

Qual é o problema de uma conversa em que os olhos se tocam e atentam num exercício completo (mas, ainda assim) muito complexo de (im)provável comunicação??
Mais, qual é o problema contigo?


Intuí cedo que não estavas bem, que não estávamos bem. Questionei-te atempada e repetidamente sobre o que é que se passava. A dada altura, comecei a acreditar no disco riscado que a tua boca debitava “não tem nada a ver contigo. Sou eu que não ando bem”. Por isso, foi com surpresa, com mágoa e com um inexplicável pânico que, num habitual final de tarde, recebi um “acabou”, embrulhado em clichés e palavras feitas. Procurei desatá-lo, desmontá-lo, dissecá-lo para te comprovar com rigor científico a insustentabilidade da tua doutrina. De nada valeu. E eu (que não sei porquê) me orgulho da digna capa de calma e tranquilidade que habitualmente me cobre, desfiz-me num choro inútil e incontido. Vestida de descontrolo e desespero, presenteei-te com a agilidade cruel que a mágoa, às vezes, permite. Em segundos, ou nem isso, passei em revista as nossas imensas conversas, os teus incontáveis desabafos, enumerei por ordem crescente a listagem das tuas fragilidades e decidi: vai ser aqui! (Ainda hoje me espanto com esse irrepetível processo que protagonizei.) Identificado o alvo, disparei com a precisão certeira de um atirador furtivo que dessa arte faz profissão.

Insistes em colocar-te sempre, e em todas as situações, como expatriado da vida, como vítima inocente que, com tudo e todos, sofre e que, por tudo e todos, é abandonado e maltratado. Por isso, arremessei: “Se queres terminar, então terminamos. Mas, repara, neste momento, estás a fazer história e quero que tenhas noção disso. Eu continuo aqui, no mesmo lugar em que me apaixonei por ti. Eu continuo a amar-te. De acordo com o que me contaste, pela primeira vez, és tu quem está a acabar. És tu quem está a decidir virar as costas e ir embora. És tu quem me abandona”. E foi com um inconfessável prazer que vi o desespero assomar-te o rosto e a irracionalidade feita grito na tua boca: “Vai-te embora! Vai-te embora! Vai-te embora…”. Foi assim que de mim te despediste. E eu fui. Arrastando um pesado vazio nos pés, um horizonte cego nos olhos e uma pedra no lugar da garganta.

Foi um tempo de estrutural mudança para mim. Nesse mês, terminava o curso e ao fim de 17 anos nas carteiras da escola eu não sabia o que fazer, não sabia o que aí vinha e tentava orientar a jangada feita de incerteza em que embarcara, munida de indecifráveis coordenadas e inúteis bússolas que apontavam o Sul, o Este, o Oeste… nunca um Norte. Em relação a ti, eu carregava apenas uma verdade: aquela não podia ter sido a nossa última conversa. Tu foste embora, mas tu haverias de voltar.

Isto era um dogma diluído em mim. Não era nítido, nem tão pouco verbalizável. Mas, eu sabia-o e, sabendo-o, esperava-te: dias, semanas, meses… Meses de espera sem nos cruzarmos uma única vez (nós que estávamos juntos todos os dias), meses de espera a catar informações de amigos comuns, sem nunca os questionar directamente a teu respeito. Até tu, no tempo que escolheste, decidires regressar. E eu lá estava, a sorrir-te e a falar-te como se não tivesse passado quase um ano. Como se nunca se tivesse rasgado o fino véu da nossa intimidade. Depois desse encontro, tu foste vindo de mansinho, como um menino regressa ao colo da mãe depois de uma travessura. E eu (estupidamente) recebi-te como tal, como uma mãe, cujo amor não se corrompe. A condição de amante, que se interpunha nesse amor, era apenas uma: nunca, mas nunca mais me vires costas, recusando-me a chave de interlocução que me pertence, isso não!

O que tu fizeste? Está bom de ver…

Como um decalque, o relevo do sofrimento irrompeu novamente em mim. Porém, foi mais curto, porque agora não repousava da certeza do teu regresso, enxotava-o a minha vontade de te abandonar definitivamente. Não sei se o soubeste, mas foi aí, nessa tarde de domingo com sol, em que não me quiseste namorada que me despedi de ti. Foi só aí e nunca antes. Adeus, é uma palavra cujas letras se embolam na boca. É doloroso articulá-la. Mas, quando expulso o último s da boca, é um poço que irreversivelmente se tapa.

Desde então, de vez em quando. cruza-nos a estreita morfologia do convívio social aqui, do burgo. Nunca deixei de te saudar cordialmente. Mais do que uma vez, o teu olhar acusou a falta de calor com que me dirijo a ti e que contrasta com os demais que nos cercam. Mas, com essa ténue iniciativa da minha parte, sentes-te empurrado para a posição em que não te sabes ver: a posição de agressor e não de vítima. Acho que estes anos todos, sempre desejaste secretamente uma cena pública em que eu te enxovalhasse, um desprezo feito coisa visível a todos os olhos, um safanão dirigindo-te para o lugar que é teu de direito e fora do qual tu não sabes como agir, como falar, como pensar. Mas, não. Tal nunca aconteceu… O que é curioso é que ao fim destes anos todos, face a mim, ainda tentes colocar–te nesse papel.

Num apertado, escuro e ébrio bar de sábado à noite, as cinco e meia da manhã presentearam-me com a tua patética tentativa de o fazer. Como? Por sms, pois claro. “responde-me por favor… desprezas-me assim tanto ao ponto de me virares a cara?”. Pelos vistos, estiveste ali, viste-me e não conseguiste vir ter comigo…

Sabes, não é bem desprezo. É mais pena de ti e do ardiloso esforço que depositas nas armadilhas que constróis para te apanhares a ti próprio, numa contínua espiral de infelicidade…
Foto de Franscisco Garrett

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Samba no pé...

Amor é um livro, sexo é esporte
Sexo é escolha, amor é sorte
Amor é pensamento, teorema
Amor é novela, sexo é cinema
Sexo é imaginação, fantasia
Amor é prosa, sexo é poesia
O amor nos torna patéticos
Sexo é uma selva de epiléticos
Amor é cristão, sexo é pagão
Amor é latifúndio, sexo é invasão
Amor é divino, sexo é animal
Amor é bossa nova, sexo é carnaval
Amor é para sempre, sexo também
Sexo é do bom, amor é do bem
Amor sem sexo é amizade
Sexo sem amor é vontade
Amor é um, sexo é dois
Sexo antes, amor depois
Sexo vem dos outros e vai embora
Amor vem de nós e demora
(....)Amor é isso, sexo é aquilo
E coisa e tal, e tal e coisa...

Ai, o amor...Hum, o sexo...


("Amor e Sexo", Rita Lee)


Sem amor, mas com muita vontade, escolhi a poesia. Dura para sempre, como tudo, pelo menos, enquanto não terminar. No meu Carnaval pagão e sem data marcada em calendário, é tempo de dar largas à imaginação e à fantasia. Vestir-me de animal e, por desporto, correr na selva. Antes, chegar com os outros, invadindo a tela de mãos dadas. Depois, como é bom, ir embora.

Foto: "Dançando com o Azul" de Ddiarte.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Casa com vista para o futuro


Casa com vista para o futuro

Se um dia os olhos se fechassem como punhos,
ocultarias a luz entre os teus dedos.
Como crianças, rasgaríamos a esperança,
entre oferendas embrulhadas, numa véspera de Natal.
Espreitaríamos o futuro no interior de um poço
e antevíamos desejos nas moedas arremessadas ao horizonte.
Digita-me o teu corpo com mãos de luz.
Revela-me o teu segredo,
como um filho confessa as tropelias à mãe.
Faz do meu ombro a terra prometida,
onde desabas e te reconstróis.
Ama-me agora!
quando secretamente páras para respirar,
quando me chamares “casa”.

Entre limpezas de disco, pens, cd roms e outros depósitos de informação, dei com esta "Casa com vista para o futuro". As propriedades do ficheiro afirmam digitalmente que o mesmo foi criado numa "terça-feira, 13 de Fevereiro de 2007, 15:52:53". As propriedades da minha memória não me permitem recordar o que é que me levou a esboçar este projecto de casa... acho que sou eu quem, afinal, precisa de uma limpeza e de um upgrade.
Foto: "Casa de Chá da Boa Nova" de Jorge Dias.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Três tempos ou três possibilidades de amar (entre tantas)

A propósito de Three Times de Hou Hsiau Hsien (2005)
Três fragmentos históricos de três histórias, em tempos e com tempos diferentes.
Inicia-se com o tempo da busca de um depositário da indomável vontade de amar. Em 1966, O tempo do amor chegou e é, então, urgente saber-lhe o rosto, desenhar-lhe a voz e esculpir-lhe o corpo. A procura estanca na ténue reciprocidade enternecida e vaidosa que aí se estabelece. São, agora, crianças trôpegas e desajeitadas a aprender a cruzar as mãos, a entrançar os dedos, desatando o nó dos sentidos mudos.
O tempo da espera surge em 1911, no leito de uma concubina apaixonada. É um tempo suspenso, tecido com rigores de filigrana nos gestos compassados, na roupa majestática, na máscara opaca e perfeita que amordaça o grito fundo de dor e desespero, nas amarras invisíveis que aferrolham os amantes no pé da rígida e opressiva ordem social que os juntou e os aparta. É o Tempo da Liberdade que se deseja.
A pulverização da ordem traz o Tempo da Juventude. Em 2005, as opções multiplicam-se ao ritmo dos veículos de encontro, convocando a desordem e a dificuldade acrescida de arrumar prioridades, de construir decisões, de formar uma escolha. Nessa impossibilidade, a vida bebe-se de um só trago em todas as circunstâncias em que se serve. Os momentos raptam-se em frames desordeiramente alinhados, testemunhando o esforço de um arbítrio livre, o empenho no tudo, ainda que nada reste. É o tempo da escolha, porque desejo se escreve, agora, no plural, com rain and tears:
Rain and tears all the same
But in the sun, you've got to play the game
When you cry in winter time
You can't pretend, it's nothing but the rain
How many times I've seen
Tears coming from your blue eyes
Rain and tears all the same
But in the sun, you've got to play the game
Give me an answer of love
I need an answer of love
Rain and tears in the sun
But in your heart, you feel the rainbow waves
Rain and tears both for shown
For in my heart, there'll never be a sun
Rain and tears all the same
But in the sun, you've got to play the game

segunda-feira, 7 de abril de 2008

3... a conta que o Porto fez!

AGENDA

SÁBADO 05 DE ABRIL
Vencer o Estrela e transitar de Bi (orientação muito vaga e ambígua) para Tri (1 é bom, 2 é melhor e 3 é um forrobodó...)
Ligar para a empresa de merchandising e explicar que há uma necessidade antecipada do material: ainda a procissão vai no adro e já somos campeões.
Cumprimentar o balneário e festejar o título com os "rapazes".
DOMINGO 06 DE ABRIL
Dar um jeito na Avenida dos Aliados e na Alameda do Dragão (as festas têm destas coisas, fica tudo em desalinho, o que vale é já estarmos habituados...)
Descansar e recuperar da ressaca (o espumante não era grande coisa...)
SEGUNDA 07 DE ABRIL
Postar para a posteridade o fim de semana glorioso...
Não esquecer: Dar um salto à Rua do Almada e ver prateleiras... a sala de troféus está sem arrumação.
Foto: João Abreu Miranda e Estela Silva - Lusa

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Morde(r)-me

O engodo dos sentidos continua… Os raios de sol agitam-se, fazendo soar em uníssono os sinos da luz e da claridade que chocalham com as campainhas da energia e do calor. Irrompem fortes, inesperados e intensos, protagonizando o solo do momento. O corpo, treinado milenarmente para lhes responder, apieda-se, bamboleia-se em contracções, arrepios e espasmos intuídos, accionando um doce e intermitente estado de alerta. Saliva, o corpo saliva, tal como era esperado, tal como lhe compete.
Este verão, quando chega, é para todos. Distribui-se com a razão contabilística de um deve e haver não saldado no rude Inverno que passa. Incide com (in)justiça nos endividados, equilibrando a balança, com depósitos de olhares que se cruzam e se perdem... perplexos, maravilhados com os centímetros epidérmicos que timidamente despontam aqui, ali, acolá, mais adiante, além...

É a alegria e a comoção que sentimos perante a novidade da fruta da época. Os primeiros morangos, as primeiras cerejas orgulhosa e provocadoramente expostas no centro dos caixotes de madeira da mercearia do bairro. É a ansiedade nervosa da primeira trinca, a curiosidade infantil e sôfrega de comprovar se vão ser doces, se concentrarão as propriedades intransmissíveis que brincam e provocam o gosto, se escorregarão em suco, pela esquina dos lábios até ao queixo, convidando um indicador a percorrer esse trilho e a devolvê-lo à boca onde pertence.
Nada substitui o gáudio com que se recebem os primeiros morangos. Raramente são os melhores. Objectivamente, costumam ser desenxabidos, baços e rijos, mas marcam o tempo em que a prova começa, inaugurando o desfile de todos os que se seguirão… até se tornarem rotina, presença habitual, conduto do dia-a-dia. São assim os primeiros ombros que se vislumbram, transbordando de fragilidade, palidez e pudor, mas sabendo-se alvo da comoção alheia que os mira, que os finca e que de, muito, bom grado os sorveria languidamente.
São apenas os primeiros…os melhores ainda estão para vir.

Foto: "Tentação" de Amanda Com

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Body talk



O corpo é realmente muito estúpido!!! É só sentir uns raiozinhos de sol e uma temperatura mais amena e acha logo que o estão a chamar e que adquiriu o direito de falar, de manifestar vontades e desatar a primaverar por aí... Humpf! "Até eu declarar o contrário, aqui, ainda neva, estúpido!!!"
"Pshhhhhht, cala-te!"
Foto: "Vista pela janela" de Photoart.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

África minha, África tua...

Em pequena, lembro-me de uma colecção de livros, que penso ainda existir, cuja protagonista era a Anita. A Anita era uma moça que teimava em não crescer e que partilhava com os seus pequenos e fiéis leitores as suas inúmeras aventuras: Anita vai à escola, Anita no Japão, Anita no Carnaval e ronhonhó por aí a fora...

Não costumo ver os espaços informativos televisivos. Tenho por norma reservar à televisão uma função nobre, de estupidificação diária. Porém, com a rádio é um pouco diferente. Por preguiça, está sempre sintonizada na Antena 1 e impera em quase todos os cantos da casa (cozinha, quarto, escritório, casa de banho). É automático chegar a alguma dessas divisões é clic ligar o rádio. Por azar, desventura, destino (ou o que quer que seja), calhei de apanhar por duas vezes (porque o programa repete) a entrevista do senhor Presidente da República à Maria de Flor Pedroso, em terras Moçambicanas. Ora, à primeira audição, ficou a perplexidade, à segunda, instalou-se a exasperação, à terceira (em podcast, disponível no site da Antena 1, http://ww1.rtp.pt/multimedia/index.php?prog=1010) uma saudável curiosidade antropológica. Reza assim o excerto que teimou em perseguir-me:

"(...)
Cavaco Silva - Não se resolvem as dificuldades com esses pedidos de desculpa (…). Não está na minha maneira de ser. Eu acho que é coisas concretas (…). E eu trouxe, como prenda, 20 quilos de lápis sabe?
Maria Flor Pedroso - Lápis?
CS - Lápis, canetas, esferográficas, réguas, material escolar…
MFP - Mas foi comprado pela Presidência ou foi oferecido por alguma?
CS - Não, trouxe da presidência. (…) Agora, quando fui, na ilha onde estivemos a passar férias com o meus filhos, os meus netos voltaram a Portugal só com uma camisa, porque tudo o resto demos… Eles foram à escola, os meus netos foram à escola. Andaram 7 quilómetros para ir à escola. E também demos todas as nossas canetas e os nossos lápis. Tudo aquilo que… Os professores vieram ter connosco, depois. Convidamos os professores. Deixamos tudo aquilo que podíamos. Tínhamos comprado em Lisboa 5 quilos de rebuçados. Também foi uma festa enorme. Para além do jogo de futebol que ocorreu. Também participei numa pescaria, lá, com os, os, nativos da ilha. Muito engraçado! (…) Eu acho que temos facilidade de comunicação com estes povos africanos! (…) Eu gosto muito de África. Não me esquece um dos filmes que eu nunca mais esquecerei na minha vida é África Minha.
(…)
MFP - Senhor presidente, estas entrevistas costumam terminar com uma música à escolha do convidado. (…) Por isso, pedia-lhe para indicar a música que gostaria de ouvir no final desta conversa
CS - Sabe, eu seria tentado a indicar uma música clássica do Mozart, mas isso podia ser um pouco maçudo para os ouvintes. E, por isso, coloque uma música dos Beatles. Pode colocar o Yellow Submarine."

De facto, a retórica feita "desculpem-lá-qualquer-coisinha-derivado-de-alguns-anitos-de-colonialismo-brando (porque bárbaro foi o dos outros)" não acrescenta, nem transforma grande coisa. Mas, quando CS se reportava a coisas concretas, não sei, pensei em algo diferente de 20 quilos de lápis, canetas e réguas. Do mesmo modo que a festa, proporcionada pelos 5 quilos de rebuçados comprados na metrópole, continua a não consubstanciar a minha ideia de coisas concretas... Por seu turno, a pescaria com os nativos deixou-me mesmo... ehhh nervosa e quase envergonhada (lembrando-me as situações de convívio social em que alguém que conhecemos despeja uma qualquer barbaridade e, por transferência, o embaraço recai em nós, como se a frase tivesse sido articulada pelos nosso lábios). As operações de cosmética linguística, que eliminam algumas expressões tidas como politicamente incorrectas, não passam disso: embelezamento superficial. Mas, habituei-me a elas e perante a expressão nativos senti o peeling do etnocentrismo a descolar... Claro, no final da entrevista, tranquilizei-me quando percebi que nativos é o que somos, aos olhos paternalísticos do senhor Presidente de todos nós (e de além mar). Antecipando as nossas limitações e poupando-nos a um esforço de boa vontade cultural (já que não nos tinha preservado da partilha da sua messiânica boa vontade social junto dos pobrezinhos), o senhor Presidente deu-nos o Submarino Amarelo em vez da maçuda cantilena de um tal de Mozart. É sempre motivo de festa quando nos dão assim... um rebuçado.

E como é que se diz, Anita? Kanimambo, senhor presidente.

terça-feira, 1 de abril de 2008

O ponto J

Estava desde a uma da manhã naquilo… Enrolava-me na cama repetidamente… Mudava constantemente de posição, em busca de o encontrar… Ajeitava-me de modo a ficar o mais confortável e relaxada possível… Tentava limpar da mente tudo o que me perturbava e concentrava-me, ansiosa por o achar… Nada… O sono não vinha…

Fiz chá, rumei até à sala e liguei a televisão e, não tendo encontrado o sono, reencontrei o Daily Show*. Definitivamente, caso-me com o homem que, às três da manhã, vasculhando no meio da minha insónia e irritação, consiga arrancar-me uma gargalhada!

I love you Jon Stewart!!
* Passa na Sic Radical e na CNN, em horário incerto.