terça-feira, 18 de março de 2008

Virar o disco

Ontem, foi o aniversário do meu melhor amigo, o L. Apercebi-me, durante o fim-de-semana, que ele providenciava telefonicamente os convites para o jantar. Fiquei surpreendida e muito satisfeita com essa iniciativa. Mas, percebi depois que havia compreendido mal o que ela significava.

O L não é muito dado ao chamado espírito de grupo, quando este é segregador de uma certa individualidade (e, em maior ou menor grau, estar em grupo implica sempre diluirmo-nos um pouco). A esta condição de base, soma-se a actual e ainda recente conjuntura de desemprego que lhe esvazia os dias, mas, sobretudo, tende a contaminar horizontes de projecção futura.

Por tudo isto, no ano passado, não me espantou quando ele alegou um “estado de neura temporário”, declarando não organizar qualquer espécie de reunião festiva. À socapa, eu fiz os convites, e no pacato sábado à tarde, em que dissecamos os jornais, temperando a leitura com vociferações e banalidades, os amigos convidados foram chegando ao café, até ele se aperceber da inevitabilidade do jantar. Foi bom, foi divertido, porque também foi inesperado para ele.

Ora, o que sucede é que o espírito de festa resiste ao prêt-à-porter e não se compadece com datas e horas marcadas. Por coincidência conjuntural, actualmente, há uma vaga de neura-depressiva que assola um conjunto alargado de amigos. Os motivos e as situações são diversas: uns estão enredados em relações infelizes que insistem arrastar, arrasando-se com elas; outros estão reféns de narrativas profissionais que, pela ausência ou excesso de substância, lhes minam a alegria; alguns acumulam estas situações.

O jantar estava marcado para as 20:30. Eu, para não variar, deixei-me atrasar, e cheguei por volta das 21. Verifiquei, com espanto, ausências injustificáveis pela relação afectiva que julgo existir. Fui perguntando por A, B, C e explicações diversas e ligeiras foram apontadas. O jantar decorreu sem grande entusiasmo, a partida fez-se anunciar com olhares nervosos para os relógios e telemóveis. Dos 12 no jantar, ficaram 4 para beber um copo. Dos 4, fiquei eu e o L. Dei comigo a equilibrar atabalhoadamente, numa mão, o cigarro e, na outra, o pesado balanço negativo que ele produzia sobre o jantar. Este jantar significava mais para ele do que eu poderia supor. A fragilidade que ele oculta numa postura que lhe é sempre idêntica: forte, vencedora, audaz, determinada, pedia agora por colo, por um abraço colectivo. Essa mensagem, ele não a passou da melhor forma. Mas, por outro lado, parece-me que esta gente estaria demasiado embriagada na sua infelicidade e miséria para perceber.
Em inúmeras situações da minha vida, eu sou “esta gente”, bêbada de egoísmo e desventura. Nessas circunstâncias, acho que nunca me detive muito tempo a pensar na real importâcia da minha ausência para com os outros. Eu encontrava-me refém do infortúnio e padecia de uma espécie de síndroma de Estocolmo, identificando-me e criando fortes laços de estima com a dor que me havia sequestrado do mundo. A dada altura, libertar-me dependia só de mim, contudo tornava-se paradoxalmente doloroso abandonar aquele reduto familiar e confortável de lástima e de miséria.
Mas, ontem magoou-me ver o meu amigo triste, saudoso dos amigos "raptados", a extrair palavras hesitantes de si para exprimir a custo o que sentia, quase envergonhado por falar das expectativas goradas naquele jantar. Senti uma impotência (que imagino) quase maternal, perante alguém que se ama e que se quer cuidado e protegido e que ainda assim não é possível imunizar da dor que os outros, por vezes, teimam em lhe infligir. Da dor que, tantas vezes, por negligência e leviandade devo ter infligido. Quanta desatenção é desigualmente distribuída. Quanto descuido. Quanto desamor face àqueles que não nos falham, que estão ali e que, às vezes, gritam, “hoje, preciso de ti, preciso de um abraço”. Mas, esse grito não é audível porque, a infelicidade destila a sua melodia, em estilo black metal, na aparelhagem que lhe emprestamos, equipada com stereo e dolby surround...

Foto: "Lagoa do Vento I" de DDiArte

3 comentários:

Ervi Mendel disse...

Já ouvi dizer que "The most important thing in life is to show up".

A partir de uma certa idade jantares ao dia de semana decorrem invarialvelmente dessa forma.

Ritititz disse...

É muito raro recusar convites desse tipo, ou, mesmo que não esteja cheia de vontade, simplesmente marcar presença sem me esforçar para criar bom ambiente.
Mas isso sou eu, que sempre fui a boba da corte, mesmo!
Fico muito triste quando vejo que as pessoas pôem o egoísmo dos "dramas" delas à frente dos momentos felizes e importantes dos outros. Já presenciei situações dessas várias vezes, e custa-me.
Ainda bem que, por não ser assim, também tenho a sorte de me rodear de pessoas que são como eu, e não me falham nem me deixam na mão!!

Clepsydra disse...

A minha avozinha não sabe inglês, vai daí, utiliza a expressão:
"Só faz falta, quem cá está", que penso ser verdade, na maioria das ocasiões.
Mas, às vezes, mesmo em dias de semana, queremos aquele mimo que falta, aquela gargalhada que enche uma sala, queremos os outros alinhados na parada das nossas expectativas... Queremos que os outros percebam a importância da sua presença...