segunda-feira, 17 de março de 2008

Viagens na minha terra: entre a cesta e a samsonite

Desde que tenho memória que os locais de viagem me fascinam: aeroportos, gares de comboio, etc. Deslumbra-me a ideia de um território que se define como passageiro, transitório e efémero no (des)encontro que promove. Marc Augé, fala de não-lugares para designar os espaços de passagem, a terra de ninguém da identidade, onde nos une e nos isola a condição de viajante.

A minha memória das viagens de comboio remonta aos tempos de infância. As férias (na altura, mesmo, grandes) previam um mês passado na aldeia dos meus avós, em Trás-os-Montes. A viagem era antecipadamente planeada e os dias de partida e de chegada estruturalmente desenhados em torno do autoritário horário do comboio, avivados intermitentemente pela minha avó: “ele não espera por nós e se o perdemos, ficamos em terra” (expressão curiosa a utilizar para um transporte sem mar à vista). O receio de “o perder” fazia sentido, porque a frequência de comboios não abundava (situação que hoje ainda se mantém). Mas, mais grave, não cumprir com esse horário significava hipotecar o precário equilíbrio que se havia planeado com o horário da carreira que era necessário apanhar em seguida. A carreira era o autocarro velho, que apenas por protocolo tácito com a morfologia escarpada do percurso acedia em não se despenhar nos socalcos vinícolas, conduzindo-nos ao longínquo destino na montanha. Dessas viagens, retive uma imagem construída e reconstruída dos viajantes: mulheres com buço, vestidas de negro e lenços na cabeça, acompanhadas de invariáveis cestas de onde espreitavam hortaliças e de onde se desprendiam odores animais. Pesava na cesta e nesse percurso a ignorância e o analfabetismo com que fitavam o encriptado painel (mais ou menos) electrónico onde se a anunciavam as linhas, os destinos e os horários de partida, “oh, menina, pó Porto, que comboio é?", acumulavam-se nas filas da bilheteira com a confusão de quem não se explica.
As férias na aldeia deixaram de acontecer há muitos anos. As viagens de comboio tornaram-se mais frequentes e tomaram outros destinos. Nos entretantos, muita coisa mudou na fachada e no funcionamento das gares e estações de embarque. Ainda assim, a imagem das cestas não se dissipou. De vez em quando, nos contextos mais inesperados, ela dá sinais de si...
Na gare do Oriente, sexta-feira ao final do dia, tal como muita gente, encetava a viagem de regresso ao Porto. Na plataforma, juntavam-se pessoas cujos trajes e semblantes se assemelhavam, denunciando a pertença a profissões mais ou menos qualificadas e técnicas – pessoas em trânsito profissional. Foi entre "dôtores e enginheiros", PDA’s e telemóveis de última geração, que uma voz feminina, agradável e, curiosamente, perceptível (demonstrando a extinção da tradicional e nasalada advertência “o comboio procedente de Lisboa Santa Apolónia, com destino a Porto Campanhã, vai dar entrada na linha número 1, efectua paragem em, blá, blá, blá", da qual apenas era possível decifrar pequenas sílabas que se alinhavam mentalmente num puzzle em que faltavam peças) explicava agora pedagogicamente que o comboio das 19 horas teria duas composições: na linha 1, entrariam as carruagens 1 a 6 e, na linha 2, 4 minutos depois, seguiam as carruagens 7 a 12. A mesma voz pedia com insistência que os senhores passageiros conferissem o número da carruagem no respectivo bilhete e se dirigissem para a linha correspondente. Explicou uma vez, duas, vezes, três, vezes, quatro vezes (nesta altura eu já sabia de cor o relambório da moça). Finalmente, dá entrada a primeira composição, carruagens 1 a 6. E eu, esquecida de um país de cestas que não decifrava um painel de informação, verifiquei estarrecida a confusão analfabeta e ansiosa das Samsonites e dos laptops que se atropelavam na busca infundada da carruagem 7, 9 e 10 ,que só partiria daí a 4 minutos na linha contígua. "Oh, menina, pó Porto é este comboio, não é?"
Mudam-se as cestas (com sorte, rapa-se o buço), mas algo insiste teimosamente em persistir…

1 comentário:

Kitty Fane disse...

Eu tb adoro os locais de partida e chegada de viagens, sobretudo os aeroportos. Amo aeroportos. :-D

Beijinhos