segunda-feira, 3 de março de 2008

Salteando Salteadores alheios

A minha incursão nestas lides blogosféricas é muito recente e avançou quase em simultâneo como blogautora (expressão algo pretensiosa para designar os garatujos verborreicos que aqui vou depositando) e como blogleitora. Descobri que os blogs são como as cerejas, porque a partir de um, fui descobrindo outro, que depois me conduziu a outro e por aí fora… Nesse percurso, fui coleccionando alguns espaços de eleição e de visita obrigatória, que (quais Kosovos e Países Bascos) conquistaram foros de autonomia e autoproclamação na minha agenda diária.

Gosto desse passeio por jardins, salas de estar, quartos e cofres criados por pessoas que desconheço e que me atraem pelo sentido de humor, pela sensibilidade, pelo arrojo, pela partilha e identificação com algumas situações, pela inquietação e interpelação que promovem, etc. Vou-me descobrindo e revejo-me (de maneiras muito diferentes) nesses espaços por onde deambulo. Hoje, não foi diferente. Passei por todos eles. Mas, hoje encontrei-me aqui, de uma forma tão nítida, tão definida, tão perplexa e tão inquietante... Li, reli, voltei a ler e, ressalvados os devidos direitos autorais, não resisto a apropriar-me aqui deste pedaço de escrita, uma vez que estas palavras hoje irromperam em mim (sem pedir licença), assenhorando-se do meu estado de espírito.

Lê-se assim, Controversa Maresia

o salteador dos afectos perdidos

É um tipo de homem que faz alguns estragos. Provoca sentimentalmente as mulheres, da mesma forma que estas (algumas delas) provocam sexualmente os homens: com empenho, persistência e gozo. Tem geralmente uma vida sem detalhes amorosos relevantes; não porque não tenha quem goste dele (aliás, é geralmente uma pessoa adorada), mas porque é incapaz de retribuir o amor na mesma medida. Sente-se afectivamente incompleto e sabe que o defeito está nele pelo que, como um vício, alimenta-se da paixão que induz em outras mulheres na esperança de que alguma um dia o preencha. Ateia chamas como um pirómano no pico do Verão; provoca um fogo de cada vez, numa mata criteriosamente escolhida e na qual se insinua, rasteiro. Acende uns fogachos aqui e ali, em várias frentes, até lhes ser difícil, a elas, combaterem o fogo todo de uma vez. Provoca amiúde verdadeira devastação e um rescaldo que se prolonga no tempo. Porque ele nunca se envolve e sai de cena sempre a meio; e não dá nada de si parecendo que se entrega inteiro (porque tem pouco para dar, na verdade, quase nada). Quando se apercebe da seriedade e empenho do sentimento alheio, retrai-se e tenta várias estratégias. Uma (a mais frequente e cobarde) é recorrer ao humor e à ligeireza: tenta brincar com o monstro que criou, transformá-lo num gatinho inofensivo, para que não se torne numa ameaça. Isto tende a confundir aquela que, enquanto ainda arde, não percebe a razão de tais baldes de água fria. Por forma a manterem a face, elas alinham no jogo e, se não lhe respondem na mesma moeda (porque por enquanto não conseguem: aquilo queima), fingem que ele está efectivamente a conseguir apagá-las e acabam por aceitar o lugar de canto para onde são relegadas. A seguir, dá-lhes a entender que foram elas que interpretaram mal os sinais, numa cerimónia de transferência de culpa. Aceitam-no, por fim, como amigo e renegam quaisquer recordações de algo mais, com vergonha de estarem a ultrapassar a linha invisível que ele lhes traçou. Este tipo de homem é perigoso porque deixa nas mulheres por quem passa um sentimento de pendência que se prolonga no tempo, uma sensação de qualquer coisa por resolver e de incompletude emocional, uma necessidade de encerrar um ciclo, de voltar atrás e de remediar as coisas, talvez vivenciando-as de facto. Pode tornar-se numa obsessão, sem o saber. Mas não se pense que as mulheres que seduz são vítimas inocentes, nada disso. Geralmente comprometidas e com filhos (para que fiquem sempre com um pé preso noutro sítio e não se aventurem demais), são, não tanto carentes de afecto, mas mais carentes de um pouco de aventura nas suas vidas planas. Sabem no que se estão a meter e julgam que o risco compensa. Ao princípio, existe de facto uma satisfação mútua que se traduz num fino equilíbrio de vontades e numa consciência comum dos limites. Quando acaba o entusiasmo (através do tal fim subtilmente induzido por ele), resta-lhes geralmente uma amizade distante, à qual de vez em quando aflora a excitação antiga. Só há um azar susceptível de comprometer esse equilíbrio: a perda do sentido de exclusividade, pois cada uma se reconforta no facto de ter sido única . É este sentido, o de último reduto, de once in a lifetime, que sustenta o risco e que o justifica, que faz tudo ter valido a pena. Se, por manifesta estupidez ou desleixo dele, elas descobrem que assim não é, que foram apenas uma peça de um jogo que se repete, desmorona-se o precário edifício de afectos que vinham confabulando, o que pode ter consequências imprevisíveis. Isto porque a simples constatação de que o salteador irá uma vez mais ficar impune e passar incólume é pura e simplesmente inaceitável. Aquilo que alguns classificam desdenhosamente de despeito, muitas vezes mais não é do que a vontade de repor a ordem cósmica das coisas. E, convenhamos, não há melhor combustível para a vingança do que a unilateralidade das lágrimas (mesmo daquelas que já secaram há muito).

Às vezes, há textos que nos deixam assim:

.... despudoradamente nus e vulneráveis...


Foto: Sem Nome, Cristina Bento

3 comentários:

Anónimo disse...

Desculpa invadir, novamente, o teu cantinho, mas não pude deixar de ler o texto que transcreveste.
Lindo!

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Clepsydra disse...

Ana, como dizem os espanhóis "mi casa es tu casa", és muito bem vinda :)
O texto é mesmo muito bonito e vale a pena explorar toda a Controversa Maresia, bem como, Um Amor Atrevido (são da mesma autora), ambos magistralmente bem escritos. Mas convém fazê-lo em doses pequenas, porque são textos que quase sempre deixam lastro e "efeitos secundários".

Anónimo disse...

O blog 'Um amor atrevido' já o li de fio a pavio e não resisti a fazer copy-paste de alguns textos sublimes.
Ai, quem me dera saber escrever assim!
Obrigada pelas boas-vindas :)
Também tenho um cantinho, caso queiras visitar e deixar a tua marquita, tb serás muittoooo bem vinda!
Vou continuar a ler-te.
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