sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

E quando a memória nos trai?

Jantar em casa da D. é sempre motivo de festa para os meus sentidos. Aquela mulher tem a capacidade única de transformar o mais simples acto de deglutição de alimentos num banquete de contornos pantagruélicos (acho que por simbióticas artes moçambicanas ela consegue verter a sua inesgotável alegria de viver em todos os pratos que prepara). Acompanhada por um bom vinho e melhor conversa, foi fácil, muito fácil esquecer-me do telemóvel na mesa da cozinha e vir-me embora.
Dia seguinte: o drama, o horror, o pânico. Sem telemóvel, descobri que deixei de saber de cor todos os números de telefone. Ou melhor, percebi que apenas sei 4 números de telefone:
- o número de casa dos meus pais, afinal, a minha adolescência foi feita na base do telefone fixo (não, eu não sou assim tão velha, este mundo é que, em algumas coisas, avança a uma velocidade estonteante…), sem Messenger, sem hi5 e com muitos gritos do meu pai e pseudo incursões pedagógicas sobre a real vocação do telefone: transmitir recados e não alimentar conversas durante horas. Bah! Daddy, agora eu percebo, no teu tempo eram sinais de fumo…
- o número de telemóvel da minha mãe, porque (é quase embaraçoso dizer isto), apesar de morar sozinha há quase dois anos e de praticamente apenas almoçar em casa dos meus pais ao domingo, mantenho o hábito de diariamente enviar uma sms à mummy: “Mãe, hoje não vou jantar aí a casa. Beijo”. À força de o fazer todos os dias, durante quase dois anos… fixei o número.
Até aqui, tudo bem. Agora, curioso foi verificar que a malandra da memória ainda regista o número do Arquitecto (ex, ex). Fiquei estupefacta! Não uso esse número há anos e, entanto, quando, sem telemóvel, tentava resgatar alguma combinação numérica do meu baú, eis que surge o : 93 GGGDFJG. Aparecia assim, de uma forma muito nítida, sem hesitações. Naturalmente, em fase de negação, pensei “nã, nã pode ser o n.º do cromo”. Resgatado o telemóvel (fofucho) confirmou-se, era o número dele, que ao fim de tanto tempo sem uso permanecia ali empoeirado na prateleira da minha memória (ele é com cada uma!).
Bom, e depois há o teu número… Apaguei-o do telemóvel há umas semanas, bem como tudo o que te dizia respeito. Foi uma limpeza feita por fases. Reli todas as mensagens antes de as apagar, mergulhando nessas águas paradas dos momentos vividos em que acreditei termos sido felizes. Contemplei todas as fotos antes de as apagar também. Eram sobretudo fotos de verão, de suadas brincadeiras na cama, em que te apanhava a dormir exausto e sereno como uma estátua. Cada registo que apagava doía-me como se me apartasse de mim às migalhinhas…

Não ligues, hoje tou assim trenga e carente. E, logo hoje, o teu número pôs os sapatos de dança e teima em rodopiar coreograficamente no salão da minha memória, fazendo leves riscos num chão recentemente encerado…

6 comentários:

PrimaNocte disse...

Mais um post fantástico!

Ritititz disse...

Primeira visita: vou voltar. =)
Sei como é não saber o número de quase ninguém mas não esquecer um número que, por magia (negra, só pode!), permanece intacto, numa gaveta desarrumada e esquecida do córtis cerebral!
Outro ponto interessante: porque é que nós mulheres fazemos praticamente um ritual no que toca ao apagar de msgs e fotos, quando encerramos esses capítulos das nossas vidas? Já falei disto com vários homens e todos são peremptórios ao afirmar que apagam fria, cruel e rapidamente todas as sms, fotos, lembranças, seja o que for, de uma vez só, sem reler, sem recordar, nem sequer hesitar! Preferem assim. Nós não: massacramos e metemos o dedo na ferida para ter certeza de que ela ainda está lá e doi, e vai doer por mais algum tempo...e só aí sim, estamos preparadas para seguir em frente. Coisa mesmo de mulher!

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Kitty Fane disse...

Tb costumo fazer isso quando termino uma relação. Apago todos os vestígios da pessoa. Quer dizer, nem sempre o faço. Só o faço, quando a relação acaba e eu continuo a gostar da pessoa. :-)

Anónimo disse...

Olá! Descobri hoje o teu blog e já o li todo. Gostei e asseguro-te que serei uma visita regular :)

Quanto ao post, tem piada que, tal como tu, também não sei os numeros de que preciso de cor, já os que me deviam passar ao lado, não há amnésia que os apague.
E, mais uma vez, tal como tu e se calhar a maior parte das mulheres, tb apaguei todos os restos 'mortais' de uma relaçao passada e, como mulher que sou li, recordei e num acto de fúria apaguei uma a uma. Gravei fotografias e outras coisas num cd e toca de ir tudo para o fundo de uma caixa.
E concordo com a Pips, temos uma mania inata de por o dedo na ferida que só visto. Só mesmo arrumando a tralha de uma vez para continuar.
Um beijinho

Clepsydra disse...

Rituais de despedida femininos... não tinha pensado na situação nessa perspectiva... e ainda a estou a processar...