domingo, 4 de maio de 2008

T.

Porto, 29 de Abril de 2008
Hoje, nada correu bem, nada correu de acordo com o planeado (correspondência tonta entre o planeado e o bem). Só agora, ao fim do dia, rendida perante o indesmentível facto de a realidade escapar à grelha que lhe havia desenhado, de a realidade insistir em ser má, percebi. Saltei de fogo em fogo, com pequenos baldes de água que nada resolveram, porque havia sempre uma chama lá, mais à frente, que eu teimava em não ver, à qual não me lembrava de chegar. Só agora parei e vi que arde a memória da tua ausência.

Fez hoje seis anos que a inquietação, que durou todo o dia no meu corpo, me lembrava o que os chamamentos prosaicos do quotidiano teimavam em calar. Fez hoje seis anos, precisamente... Apesar de uma meia dúzia de vezes ter atravessado a data, nunca me consigo lembrar do dia... 29, 30, 1, 2. Foi confuso, porque a autópsia não foi contornada, o feriado manteve-se imóvel e o ritual fúnebre sucedeu a tudo isso... Por isso, confundo o dia exacto... Mas, lembro aquela terça-feira com a exactidão de quem decora a tabuada à força de tantas vezes a repetir. Recordo-a sempre de fora, como se me assistisse em cena, num palco redondo, em que todos os ângulos são possíveis. Vi-os a todos, mas o desfecho teima em persistir, triste.

Vejo-me a ligar-te de véspera. Ouço-te a despachar-me, alegando o mal-estar da tua mãe. Aceito a recusa da minha companhia para o dia seguinte. Sinto que foi estranho, mas nada mais do que isso. Essa noite passou, com as horas de todas as outras. Essa manhã despontou igual às irmãs que nasceram antes dela. Rumar à faculdade, dirigindo-me para Associação de Estudantes (nesse ano, achava-me comprometida e empenhada no movimento colectivo de luta pela mudança... é com cada uma...). Lembro com precisão o ponto do percurso em que me encontrava, quando estranhei não atenderes a minha chamada, mas prossegui. Tentei de novo ao início da tarde, obtendo idêntico resultado. Afastava a preocupação ridícula que infundadamente (insistia eu) se queria instalar. Arredei-a sempre que me falaste do assunto. Arrumei-a sempre, afundando a premissa inicial da tua doença, não permitindo, assim, dar seguimento mental à resolução que mais do que uma vez me anunciaste. Não, já disse. Não!
Portanto, foi com a preocupação estendida do ringue, mas não KO, que digitei o número da tua casa. Estranhei a São a atender o telefone, agitei-me com a voz que tremelicadamente lhe saía da boca: "É a menina Clepsydra? A senhora está aqui num desespero, queria falar consigo, mas não encontrava o número. Ele levou tudo, as agendas todas e ontem já não dormiu cá..."

Recordo-me estática, não compreendendo o mundo que teimava em rodar. Recordo-me falsamente serena e formal a ligar para a morgue, para confirmar a loucura alheia, "Muito boa tarde. Seria possível informar-se se deu entrada ...? Sim, sou parente". E a voz a mudar do outro lado, para um tom formalmente compungido e riscado à força de tanto de se repetir. E a minha loucura a confirmar-se e não a do mundo... E um choro que não dava vazão ao que sentia a preencher-me o corpo. E o grito fundo na garganta como um poço a calar-me a voz...
As informações que detalhavam o processo iam chegando aos poucos. Foi possível saber as horas em levantaste os exames na clínica. Assinalar o ponto da tarde em que informaste que não jantarias em casa. Identificar o horário do avião em que embarcaste para Lisboa. O nome do hotel, o andar e o quarto em que te instalaste. Entre registos, descortinou-se o tempo em que o serviço de quartos te levou um Logan com gelo que adormeceu a réstea de medo que (eventualmente) sentias. Por estimativa forense, foi também possível saber quando é que atravessaste a janela, pisando, vivo, pela última vez, o chão firme. Só não se define a hora em que a reconstituição da tua ausência ocorre. Só não se preenchem nunca completamente os laços da compreensão plena, total e completa. As tuas últimas palavras com destinatários óbvios: a tua mãe, o teu pai invocado, porque já falecido, o teu irmão, a tua irmã e, depois, a amiga, "a tua grande amiga". Eu...

Eram tantas as perguntas que me nasciam orfãs de resposta. Era tão misturado e oscilante o que sentia. Tantos ses aniquilados em duros, desiguais, longos e persistentes combates. À força de tudo isso fui construindo uma certeza instável resignada, na qual me apoiei para voltar a sorrir, a "ser bonita" (como me dizias nas derradeiras palavras que me dirigiste). Ainda assim, às vezes, vacilo, insisto em má, escapando ao que me planeio, insisto em ser feia e choro, molhando a secretária de saudágrimas tuas, muitas, imensas, meu querido!

9 comentários:

Tempus_Fugit disse...

Sou da opinião que somos donos de uma beleza a toda a prova, desde a alegria eufórica ao choque e tristeza profunda e irremediavel da tragédia. É a inteligência de que somos donos que nos dá acesso a essa beleza. É o que fazemos com a inteligência.

Flávio Dantas disse...

maneiro seu blog!
vamos nos linkar? :}

SK disse...

Vénia respeitosa.

Belíssimo.

Ritititz disse...

"Recordo-a sempre de fora, como se me assistisse em cena, num palco redondo, em que todos os ângulos são possíveis. Vi-os a todos, mas o desfecho teima em persistir, triste."
Sei tão bem qual é essa sensação. Quase uma experiência fora do corpo. E com o passar do tempo acho que se torna cada vez mais forte porque tenho a sensação de ter vivido aqueles momentos de todos os ângulos e perspectivas, conseguindo até, olhar para mim, para os meus olhos de desespero e incredulidade. Será que algum, dia essa sensação passa?
Eu gostava que sim...

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

"Saudágrimas" que se choram pela impotência de não conseguir combater essa ausência...
Fiquei comovida... Mais uma texto sublime minha cara! Pena que à custa da própria vivência..
1 beijinho*

Kitty Fane disse...

Sem palavras.

ulrich disse...

este post é um exercício na arte da elipse

Teresa disse...

Fantástico... porra...