quarta-feira, 28 de maio de 2008

Crash

Após uma semana de subjectivo mal-estar difuso, de origem esparsa e vagamente compreendida, sucede-se o culminar objectivo e factual da indisposição.
A sexta-feira anunciava-se precocemente finita, após estadia prolongada em funesto local de trabalho. Os amigos, mais concretamente, o apelo genuíno de uma amiga, fizeram-me adiar o projecto acalentado de ir para casa às onze e meia (a uma sexta à noite!! Não me recordo da última vez que tal aconteceu). O acto de protelar o regresso a casa sucedeu-se hora após hora, acontecendo apenas às seis e meia da manhã. Já o dia despontava e as ruas húmidas e cinzentas da cidade acolhiam tímidos movimentos antagónicos: uns encetavam o desejado regresso a casa e o encontro já atrasado com o sono; outros, abandonavam os braços de Morfeu e iniciavam o desfile dos compromissos laborais.
Ia assim, absorta em pensamentos inócuos e incompletos, que estancavam num semáforo vermelho. Os semáforos costumam ser os locais onde testo os meus reflexos Fittipaldinescos: fico muito atenta às movimentações luminosas e, assim, que a mudança ocorre, o carro desloca-se com uma primeira ágil e desenvolta transformação de velocidade. Normalmente, sorrio satisfeita: fui a primeira a arrancar. Costuma durar pouco, porque o meu chasso utilitário rapidamente é ultrapassado por cilindradas capitalistas: Humpf! Já me tinha detido algumas vezes a pensar no movimento oposto: isto é, nos colegas que dilatam a permissão do verde, até ao amarelo intermitente e ao proibitivo vermelho. Estas vontades contrárias um dia haveriam de chocar. Um dia, foi no sábado…



Já em movimento, pelo canto do olho, percebi, em instantes temporais que se dilatavam, que o choque seria inevitável. Em transversal e hiper estado de alerta, o corpo reage com uma inusitada rapidez e as sinapses sucedem-se de uma forma alucinante. Recordo esses instantes, como longos e lentos momentos em que pude pesar diversas alternativas e decisões: travar e, ainda assim, saber de antemão que não seria suficiente… Crash! Menos mal, foi só chapa, gritava o meu lado optimista… Ai o carago, vociferava o meu lado realista (e tripeiro), enquanto constatava que a apólice do meu colega condutor se encontrava caducada… Coitado do senhor, vê-se pelo carro de um modelo que já não se fabrica, pela ausência de alguma dentição frontal e pelo horário madrugador de labuta ao fim-de-semana que não tem pais ricos, não ganhou a lotaria e o BES não lhe empresta 5 euros que sejam, gritava a minha costela das questões sociais de esquerda. Não tem seguro, vai de transportes públicos e não se arrisca a passar um vermelho e a prensar-me em chapa barata, vociferava a minha costela individualista e self-made-man de direita.

Não ando com tempo, nem espaço mental para resolver aporias, mas já me fui mentalizando que o subsídio de férias tem destino certo: vai para a garagem do meu mecânico e eu fico a beber daiquiris em praias longínquas e paradisíacas? Não, copos de água, pedidos com jeito e especial favor numa barraca das praias de Leça, com vista para a refinaria.
Até para o azar é preciso ter sorte ou dinheiro!
Foto: "Semáforo", de Padroense

8 comentários:

Anónimo disse...

Peço desculpa minha querida que o caso não é p'ra brincadeiras, mas com esta descrição não pude abafar um risinho...:)

Ervi Mendel disse...

Mulheres ao volante...

(estás bem do pescoço, etc?)

Recuperação disse...

Excelente descrição!
O importante é ninguém se ter magoado... dizem os entendidos.
Mas isso não interessa nada... quando desfiz o meu carro à uns anos atrás, só me apetecia ter morrido no acidente... só de pensar na pipa de massa que ia gastar.
Mas é assim a vida...
Tenha um bom dia, dentro dos possíveis, menina Clepsydra

Osga disse...

Podes sempre deixar a Leça e vir até ao Sul. ;)

Heduardo Kiesse disse...

haja sorte e final feliz!
beijo

paradoxos

Clepsydra disse...

Xinha,
Antes assim, nada como o riso para potenciar a capacidade de relativizar os acontecimentos.

Ervi,
Eu estou bem, a minha auto-estima de Fittipaldi é que ficou um pouco abalada ;)

Recuperação,
Obrigada pela visita e pelas simpáticas palavras e mais uma vez, claramente, o mais importante é ninguém se ter magoado.

Osga,
O meu estado de indigência financeira é tal que mesmo para chegar ao Sul, teria de ser à boleia (olha, até pode ser pensado, apanhar um camionista jeitoso ;)

Eduardo,
Um grande bem haja (sorte, final feliz e uma transferência bancária também não ia nada mal)

Daniel disse...

Bem sei que entortar a chapa do bólide é um preço demasiado elevado a pagar por um bom parágrafo mas aquela aquela parte da prosa sobre os «reflexos Fittipaldinescos» é francamente boa e não é certo que visse a luz sem este episódio do acidente.

Mesmo não sendo grande consolo, espero que dê algum alento.

Clepsydra disse...

b-site,
Obrigada, mas infelizmente, não dá grande alento. Não é só a chapa amolgada. O que verdadeiramente me angustia é este fim precoce numa carreira que tanto prometia. Via-me como um Obikwelu nos 100 metros do automobilismo urbano e agora o sonho findou-se.