segunda-feira, 21 de abril de 2008

A sedução da circunstância III

A confirmação do nosso encontro foi cronologicamente antecedida pela necessária preparação que a possibilidade desse acontecimento exigia. Na ausência de intimidade e do filtro protector do afecto, as pequenas manchas não têm lugar. São nódoas observadas à luz branca e crua da retina, são defeitos sem história, são pontos sem lastro que, sem clemência, se julgam. O ritual de preparação, da apresentação do eu ao outro, é, assim, um conjunto de actos sequenciados, comandados pelo prazer egoísta da dissimulação. Quero-me desejável, ao olhar nos teus olhos, encontrando o reflexo que me pertence e que espero que me seja devolvido. É nesta ânsia que a pele se alisa e perfuma, que, com especial cuidado, os cabelos se lavam e penteiam, que as unhas se moldam como pequenas garras, que as peças de lingerie, assentes no corpo, finalmente se encontram, casadas com um ente da mesma cor e espécie. A alegria da festa começa, assim, bem antes, forçando o corpo a um estágio antecipado do prazer que se adivinha.

O dia passou com paragens frequentes nas imagens desfocadas de ti. Forçava-me a desenhar-te a face, mas as tuas feições teimavam em permanecer ocultas. Recordo com facilidade os nomes, mas não consigo guardar os rostos (a miopia sem óculos que me acompanha deve ter algo a dizer sobre isto). Procurava alinhar as outras pistas que tinha sobre ti. A textura das tuas mãos? Disso, eu recordava-me. Mas, o que é que indicava? Em que se ocupariam elas nos dias comuns? Não sabia. Nada sabia de ti e queria que esse estado primitivo de ignorância fosse preservado até ao limite possível da sua pureza.

Saí do trabalho sem pressa e, desprovida de um sentido de orientação geográfico operativo, lancei-me na confusão labiríntica do concelho peri-urbano da tua morada. Tinha decidido que não me faria anunciar com um ridículo telefonema em que afirmasse estar perdida. Portanto, foi já com a luz do fim do dia sumida entre as nuvens e acompanhada da chuva que, tal como eu, persistia na sua tarefa, que me encontrei no ponto certo. Deixei o carro e ensaiei o passo em direcção ao número da tua porta. Agora, só agora, a inquietação e o nervosismo se faziam coisa pesadamente depositada no estômago. Aligeirava-o com o exercício habitual de racionalizar a vida e as suas opções.

A campainha tocou. A porta da entrada abriu-se. O elevador avançou para o primeiro andar. No meu lado esquerdo, uma nesga de luz denunciava uma porta entreaberta para me receber. Segundos, não mais do que isso, foi o tempo que ambos tivemos para processar a informação do exame visual que decorria. O resultado seria imediato e eu, tentava adivinhar a posição da minha avaliação na tua escala. (Acho que passei… Tu também não estiveste nada mal.)

Chegada ali, já havia pago a portagem que me permitia transpor a soleira da tua porta. Tinha decidido nada dizer, mas traiu-me a sofreguidão e o desconforto miudinho das situações não dominadas. Não resisti a escudar-me ridiculamente num “não foi nada fácil chegar a tua casa…”. Sorrias, nervoso também, “Imagino que não…” Estancava-se aqui a corrente de civilidade. Podemos falar do tempo, mas do nosso, da tempestade que nos percorre e que ameaça desabarmo-nos.

Ensaia-se a medo um recomeço. Onde é que havíamos ficado mesmo? Onde é que eu tinha deixado as minhas mãos? Onde é que me esqueci do beijo? Sim, foi aí, e aí, e ali também. Como se os dias e as noites não nos tivessem afastado, retomamos a dança, agora, sem música. Recomeçamos essa conversa perfeita que nunca teve palavras. Senhor da pista, conduzias-me por corredores incógnitos, cujas paredes eu tacteava para não me perder no frágil equilíbrio que tentávamos manter. Fomos desaguar ao quarto onde se entranhavam alguns pormenores daquele espaço, preparado por ti, para aquele tempo: um cheiro cítrico e fresco, a luz franzina e esguia das velas, a cama feita com rigor… (afinal também te preparaste, pensei…)

Sem palavras, libertamo-nos das roupas. Sem roupas, libertamo-nos da pele. Éramos bolas de desejo concentrado, corpo em carne viva, que se ateava e inflamava mesmo em movimentos mínimos e meros sussurros. Achei graça ao teu diluído esclarecimento de músico que, intuindo um público ignorante da partitura, se apressa a travar aplausos no fim do primeiro andamento. “Aplaude-se no fim, menina”. O concerto continuaria animado pela vontade férrea de me ver ora rendida, ora combatente sem tréguas face a ti. Tal como num concerto, impõe-se um intervalo em que outras capitais necessidades se satisfazem. Morder alguma coisa? Matar a sede? Fumar um cigarro? A pausa é também o espaço de sociabilidade por excelência No intervalo, vestimos a palavra e agora, sim, mais cobertos e compostos, emerge o desconforto da conversa que se força e do nada tem de brotar. No amplo salão do verbo, éramos crianças descoordenadas e trôpegas que, a custo, ensaiam um passo. Primeiro um pé, depois o outro, agora, o entusiasmo deslumbrado do movimento com mais rapidez para, em seguida, nos espalharmos ao comprido num silêncio duro.

“É tarde, acho que vou andando”, disse, esperando que assim se findasse a pausa social. “Podias ficar mais um bocadinho…”. “Mais um bocadinho? Pergunto, enquanto me desconjunto de novo no teu colo… É, mais um bocadinho, então… Até se acender a luz e olhar em volta. Até ser hora de recolher as ruínas e abrigar o corpo nos despojos da roupa confusa que o chão oferece. Mais um bocadinho e chego a casa. Mais um bocadinho e desconfio que, de uma forma ou de outra, voltaremos a alinhar-nos, renovando as teias de perpétuos círculos de sedução que ora se ateiam, ora se extinguem. Mas, agora estamos por nossa conta. Somos nós e não a circunstância. Começas tu?

Foto: Sonhos de Sal de Paulo César


5 comentários:

Ritititz disse...

Quero comentar mas não sei o que escrever. Acho que nunca me tinha acontecido isso.... vou pensar um bocadinho e já cá volto!

Anónimo disse...

Pois..estou com o mesmo "problema" da pips... Perante um texto destes o que é que uma pessoa pode comentar??? Não dá! F-A-B-U-L-O-S-O!

Osga disse...

Não dá nem vale a pena, quase todos os dias cá vejo e ela escreve demasiado bem, não deixa pontas soltas nem aberturas. Eu já deixei de comentar, simplesmente fico em deleite que é o melhor.

Bjs e não pares a escrita!

Clepsydra disse...

Obrigada pelos comentários e pela atenção de ler uma história inflacionada a 3 postas! Olhem que é preciso ter paciência :)

Ervi Mendel disse...

Que bom! Já tens leitores a teus pés :)