quinta-feira, 17 de abril de 2008

A sedução da circunstância I

Já era tarde, muito tarde. E a noite, para surpresa e agrado de todos, tinha-se feito alegre, vibrante e ritmada. Os anos 80 destilavam vapores intensos, recordando a memória de letras que já se julgavam esquecidas. Os amigos iam cedendo ao cansaço e ao peso etílico que as garrafas vazias haviam depositado no corpo. Ainda assim, o chão teimava em permanecer frenético, rodopiante e escorregadio. Quase certa do meu isolamento, abandonei a vista, enquanto os olhos se cerravam. Ficava só a música, ficava só o corpo.

A tua silhueta, camuflada pelo som, pela intermitência das luzes e das sombras e pela minha (deliberada) distracção, encontrava-se ali, como um astro, em alinhamento cósmico com a minha votada solidão. Não foi imediato. Ainda à distância, a percepção que um do outro tomávamos e a consciência partilhada das engrenagens desse processo dilatou uns instantes, preenchendo o momento. Consumado o conhecimento, plantou-se o leve e doce desconforto da confissão assinada da corte. A comunicação feita coisa, feita matéria, inegavelmente vertida em forma moldável para a receber, nascia ali. Ainda ténue. Ainda tímida. Sempre ambígua...

A distância encurtava-se, porque os corpos agora soluçavam a uma só voz, a do nosso (possível) entendimento. Os joelhos faíscam quando se tocam, ainda sem querer. Os dedos roçam-se em coreografia sem ensaio prévio, mas com passos sabidos de cor. Eu não recuo e tu também não. Repetem-se os toques. Improvisam-se avanços. O espaço some-se no encaixar das nossas pernas. Perfeitas, como peças desenhadas desde o início para tal fim. A tua mão descobre a depressão da minha cintura, fincando-se na fronteira da minha anca. Ainda é leve e inofensiva. Aos poucos, ditará a sua sólida deliberação, acercando-me ainda mais de ti. Estamos agora prensados um no outro, reféns do teu desejo firme que me busca e que eu acho, com uma vontade que te engole entre as minhas coxas.

A linha do teu queixo revista-me a curva do pescoço. Encontra o arrepio em fuga, mas prossegue, mandatada por uma autoridade que nos escapa. A respiração encontra-se agora próxima, visível, incontornável. Mas os olhos permanecem fechados, votando na reeleição da magia e da ilusão. Poder ao demiurgo que nos comanda, accionando os fios invisíveis do desejo. Tacteia-me os lábios, invade-me sem pedir permissão e faz-me refém do teu beijo e raptora da tua vontade.

Ainda há as mãos… As minhas mãos são o elemento mais insubordinado do corpo, presas por um receio sem nome, por um pudor sem sentido, recusam acatar a ordem de te tocar. Contrafeitos, os dedos vasculham-te a nuca, emaranhando-se no teu cabelo sem cor. É nas mãos que se encontra a resistência! É com elas que, aos poucos, e a custo te afasto... São as mãos que agora me articulam a boca, depositando as palavras que espalharei nos teus ouvidos: ”... desculpa, mas acho melhor ir-me embora…
Foto: S/N, de abrito
(to be continued... as it was)

2 comentários:

Heduardo Kiesse disse...

De repente, fugi de fora para dentro do teu pomar e te encontrei em pleno acto de criatividade, sensibilidade, beleza e inteligência, estás aprovada :-)

um beijão grande, imenso!

gostei mesmo!!

Osga disse...

Quando se escreve,

"A linha do teu queixo revista-me a curva do pescoço. Encontra o arrepio em fuga, mas prossegue, mandatada por uma autoridade que nos escapa."

que poderei dizer?! Por mim continuas a escrever assim :D