quarta-feira, 16 de abril de 2008

A adoração dos meninos

Os estudos (sim, esses todos que comprovam o que vou dizer) demonstram que o sono é muito vantajoso. Eu já suspeitava (sim, porque alguns estudos tendem a comprovar tautologicamente o que já se sabia) e, como tal, respeito-o e ele a mim. É uma relação muito antiga que, com aviso prévio, se consuma invariavelmente na cama. Sem grandes preliminares (é chegar e dormir). Sem grandes inovações kama-sumátricas (barriga para baixo, sempre). Eu e ele somos criaturas de hábitos rígidos (sempre sem almofada). Não temos hora marcada, nem nos aborrecemos com isso. Ele confia em mim e sabe que eu regresso sempre. Eu não temo a sua ausência e confio que ele chega sempre sem demora.

Recentemente, há um terceiro elemento que teima em se intrometer. É o pré-sono e tende a acontecer no sofá. A carne é fraca e, às vezes, sucumbo à tentação de lá ficar. O dia seguinte é acompanhado de arrependimento e de uma pesada culpa, que se faz sentir com particular acutilância na zona lombar. Em acto de contrição intermitente, repito: nunca mais, não volta a acontecer. Mas volta, porque o sofá é matreiro, sedutor e fácil.

Ora, quando durmo no sofá, os braços de Morfeu deixam as suas marcas na minha memória. Imagino que devo sonhar todos os dias, simplesmente não me lembro, excepto quando desfaleço no sofá…


Eu, assim, do nada estava grávida (bom, não era bem do nada, era mais de um recente casual-nada). Eu decidia ter a criança. O meu pai ficava muito contente com a sua filha mãe solteira (!!!) e com a sua condição de avô. Por seu turno, a minha avó fazia-me festas na cabeça e murmurava, “olha filha, tudo se cria, tudo se cria”. Num processo muito asséptico (menos mal, porque um sonho neo-realista eu não suportaria!), eu lá tinha a criança (em pé?!) e ficava muito admirada porque não tinha doído nada. Eu amamentava-a e fica novamente admirada porque não tinha doído nada. Eu olhava embevecida o meu/minha mini-me que não chorava e só sorria…

Eu, felizmente, acordei… alagada em suor e estupefacção.

Bem sei que, de há uns tempos a esta parte, alguns dos meus amigos e conhecidos decidiram apostar nesse empreendimento de longo prazo que consiste em procriar. Mas, à minha inicial alegria face à comunicação da notícia, têm-se contraposto sucessivos desgostos, porque vejo esses amigos e conhecidos a esvaírem-se no ralo da paternidade. O mundo é colocado entre parêntesis e de um só fôlego engolem o papel de mãe/pai que agora desempenham.

A criança ainda não nasceu e já a conversa é totalitariamente absorvida pela projecção do dia em que tal venha a acontecer. Onde é que vai ser? Na clínica, na maternidade, no hospital, em casa à moda antiga? Como é que vai ser? Com epidural, sem epidural, cesariana, natural à moda antiga? Depois, nasce e, então, o deslumbramento é tanto que o resto do mundo é açambarcado na narrativa que repetem, à laia de pioneiros que pisam Terra Nova (e pisam mesmo, mas antes já muita gente lá esteve, né?). Nesta odisseia ganham foros de assunto de Estado problemas como a cor do cocozinho e da ranhoca, a idade certa para lhe darem um irmãozinho (aqui a doutrina divide-se abissalmente; uns defendem o logo a seguir, outros advogam um período de pousio), a prospecção de infantários e colégios, lembrando-se da casa dos tios em Coimbra (no caso de ele/ela ficar lá estudar, quando entrar para a Universidade).
Com os putos ainda de tenra idade, mas já mais crescidos, os pais tentam retomar uma suposta vida social e arriscam-se com a criatura em espaços públicos e semi-públicos. Aqui, já testemunhei comportamentos de crianças e, sobretudo, temeroso, cobarde e irresponsável, anuimento de pais anónimos que me arrepiam dos pés à cabeça. Custa-me quando isso é protagonizado por quem conheço e que igualmente criticava tais posturas. Desde logo, “é muito difícil sair de casa com eles”, é o carrinho, é o coque, é as fraldas, é o leite, é o robocope, é o playmobil, é o Noody, mais o c******. Depois, uma vez à mesa, é ponto assente que a criança tem de se distrair, ou melhor a criança tem de ser distraída. Mobiliza-se, assim, a corte de bobos… quer dizer, adultos nessa adulação por turnos ao rei… quer dizer ao puto. Eu não peço que uma criança se comporte como um adulto, mas exijo que um adulto (sobretudo, se meu amigo) não se comporte como uma criança. Ficam muito chocados com as críticas, alguns exclamam: “ah! Não gostas de crianças?”. “Não, não gosto de crianças, tal como não gosto de adolescentes e não gosto de velhos. Gosto de algumas crianças. Dificilmente, de alguns adolescentes. E, cada vez mais, de alguns velhos!”

Puff, much better! Tive algum receio da bruma delicodoce (sim, admito) em que o sonho me envolveu, por isso precisava de destilar um contraponto, em modo concentrado, de bílis e fel.
Foto: "Para esperar sentado" de Nuno Rodrigues.
Pintura: "La adoracion de los magos" de Pieter Coecke van Aelst (acho eu...)

2 comentários:

Ritititz disse...

Não podia estar mais de acordo! E por isso não acrescento nem mais uma palavra! Ok...uma onomatopeia: Clap, Clap, Clap!

SK disse...

Subscrevo integralmente... :)
Bolas, se subscrevo :)