sexta-feira, 11 de abril de 2008

(desen)laços

É, muito provavelmente, um problema meu. Será, muito provavelmente, um problema que tão cedo não irei resolver.

Comparativamente à população que me rodeava, aderi muito tarde ao uso do telemóvel. Achei, durante muito tempo, que era uma moda e que iria passar. Puro, duro e redondo engano. Veio, instalou-se com modos senhoriais, e instituiu um modo de governação muito próprio, que perpassa as mais diversas esferas da vida. Deixei de estranhar a cobrança que bate à porta sempre que uma chamada não é atendida e sempre que, inevitavelmente tendo ficado registada, não é devolvida no tempo sentenciado como justo e certo. Contudo, ainda não assimilei esta terra-de-ninguém-não-protocolada das sms. Eu até acho graça ao exercício de escrita, onde as palavras adquirem outra forma, alinhando-se com outro ritmo e novas disposições afluem por caudais diversos. Mas, para mim, decretei funcionalmente o uso desse tipo de mini-mensagens. As sms servem o propósito de transmitir recados (“chego às não sei quantas horas”), colocar perguntas de resposta simples (“sempre vais ver o jogo ao café?”), jogar com outras pedras num possível tabuleiro de sedução (“vi-te e estavas linda…”), partilhar alguns estados de espírito (“penso em ti…”). Nesta prosaica e tabelada utilização não cabe o esclarecimento de possíveis mal-entendidos. Pelo contrário, acho que as sms têm a propriedade de os gerar, bem como de os agudizar.

Qual é o problema de uma conversa em que os olhos se tocam e atentam num exercício completo (mas, ainda assim) muito complexo de (im)provável comunicação??
Mais, qual é o problema contigo?


Intuí cedo que não estavas bem, que não estávamos bem. Questionei-te atempada e repetidamente sobre o que é que se passava. A dada altura, comecei a acreditar no disco riscado que a tua boca debitava “não tem nada a ver contigo. Sou eu que não ando bem”. Por isso, foi com surpresa, com mágoa e com um inexplicável pânico que, num habitual final de tarde, recebi um “acabou”, embrulhado em clichés e palavras feitas. Procurei desatá-lo, desmontá-lo, dissecá-lo para te comprovar com rigor científico a insustentabilidade da tua doutrina. De nada valeu. E eu (que não sei porquê) me orgulho da digna capa de calma e tranquilidade que habitualmente me cobre, desfiz-me num choro inútil e incontido. Vestida de descontrolo e desespero, presenteei-te com a agilidade cruel que a mágoa, às vezes, permite. Em segundos, ou nem isso, passei em revista as nossas imensas conversas, os teus incontáveis desabafos, enumerei por ordem crescente a listagem das tuas fragilidades e decidi: vai ser aqui! (Ainda hoje me espanto com esse irrepetível processo que protagonizei.) Identificado o alvo, disparei com a precisão certeira de um atirador furtivo que dessa arte faz profissão.

Insistes em colocar-te sempre, e em todas as situações, como expatriado da vida, como vítima inocente que, com tudo e todos, sofre e que, por tudo e todos, é abandonado e maltratado. Por isso, arremessei: “Se queres terminar, então terminamos. Mas, repara, neste momento, estás a fazer história e quero que tenhas noção disso. Eu continuo aqui, no mesmo lugar em que me apaixonei por ti. Eu continuo a amar-te. De acordo com o que me contaste, pela primeira vez, és tu quem está a acabar. És tu quem está a decidir virar as costas e ir embora. És tu quem me abandona”. E foi com um inconfessável prazer que vi o desespero assomar-te o rosto e a irracionalidade feita grito na tua boca: “Vai-te embora! Vai-te embora! Vai-te embora…”. Foi assim que de mim te despediste. E eu fui. Arrastando um pesado vazio nos pés, um horizonte cego nos olhos e uma pedra no lugar da garganta.

Foi um tempo de estrutural mudança para mim. Nesse mês, terminava o curso e ao fim de 17 anos nas carteiras da escola eu não sabia o que fazer, não sabia o que aí vinha e tentava orientar a jangada feita de incerteza em que embarcara, munida de indecifráveis coordenadas e inúteis bússolas que apontavam o Sul, o Este, o Oeste… nunca um Norte. Em relação a ti, eu carregava apenas uma verdade: aquela não podia ter sido a nossa última conversa. Tu foste embora, mas tu haverias de voltar.

Isto era um dogma diluído em mim. Não era nítido, nem tão pouco verbalizável. Mas, eu sabia-o e, sabendo-o, esperava-te: dias, semanas, meses… Meses de espera sem nos cruzarmos uma única vez (nós que estávamos juntos todos os dias), meses de espera a catar informações de amigos comuns, sem nunca os questionar directamente a teu respeito. Até tu, no tempo que escolheste, decidires regressar. E eu lá estava, a sorrir-te e a falar-te como se não tivesse passado quase um ano. Como se nunca se tivesse rasgado o fino véu da nossa intimidade. Depois desse encontro, tu foste vindo de mansinho, como um menino regressa ao colo da mãe depois de uma travessura. E eu (estupidamente) recebi-te como tal, como uma mãe, cujo amor não se corrompe. A condição de amante, que se interpunha nesse amor, era apenas uma: nunca, mas nunca mais me vires costas, recusando-me a chave de interlocução que me pertence, isso não!

O que tu fizeste? Está bom de ver…

Como um decalque, o relevo do sofrimento irrompeu novamente em mim. Porém, foi mais curto, porque agora não repousava da certeza do teu regresso, enxotava-o a minha vontade de te abandonar definitivamente. Não sei se o soubeste, mas foi aí, nessa tarde de domingo com sol, em que não me quiseste namorada que me despedi de ti. Foi só aí e nunca antes. Adeus, é uma palavra cujas letras se embolam na boca. É doloroso articulá-la. Mas, quando expulso o último s da boca, é um poço que irreversivelmente se tapa.

Desde então, de vez em quando. cruza-nos a estreita morfologia do convívio social aqui, do burgo. Nunca deixei de te saudar cordialmente. Mais do que uma vez, o teu olhar acusou a falta de calor com que me dirijo a ti e que contrasta com os demais que nos cercam. Mas, com essa ténue iniciativa da minha parte, sentes-te empurrado para a posição em que não te sabes ver: a posição de agressor e não de vítima. Acho que estes anos todos, sempre desejaste secretamente uma cena pública em que eu te enxovalhasse, um desprezo feito coisa visível a todos os olhos, um safanão dirigindo-te para o lugar que é teu de direito e fora do qual tu não sabes como agir, como falar, como pensar. Mas, não. Tal nunca aconteceu… O que é curioso é que ao fim destes anos todos, face a mim, ainda tentes colocar–te nesse papel.

Num apertado, escuro e ébrio bar de sábado à noite, as cinco e meia da manhã presentearam-me com a tua patética tentativa de o fazer. Como? Por sms, pois claro. “responde-me por favor… desprezas-me assim tanto ao ponto de me virares a cara?”. Pelos vistos, estiveste ali, viste-me e não conseguiste vir ter comigo…

Sabes, não é bem desprezo. É mais pena de ti e do ardiloso esforço que depositas nas armadilhas que constróis para te apanhares a ti próprio, numa contínua espiral de infelicidade…
Foto de Franscisco Garrett

6 comentários:

Anónimo disse...

Há laços difíceis de desenlaçar...bolas!

Osga disse...

Apesar de não te conhecer nem as nossas vidas terem-se cruzado vejo esta narração como demasiado familiar. Já vi que existem demasiadas pessoas a criarem jogos desnecessários.Continua a escrever assim.

bjs ;P

vague disse...

Texto poderoso, Clepsydra.

Ritititz disse...

Parabéns pela postura irreprensível, pela coerência dos actos, pela capacidade de análise, e de transformar a dor em aprendizagem.
Custa mesmo desatar esses nós, encontrar o fio à meada e sobretudo deitá-los para longe como se nunca nos tivessem prendido numa teia de sentimentos dos quais é tão difícil livrarmo-nos. Mas se vives com a tranquilidade e coerência que as tuas palavras transmitem...vives bem contigo própria, e isso é sempre o mais importante.

Clepsydra disse...

Obrigada a todos, pelo sentido que as vossas palavras me insuflam, num renovado significado de PARTILHA.

Ervi Mendel disse...

Excelente, como sempre. Mas se tivesse mais sexo e menos sentimentos eu também não me importava :D

Ervi