quarta-feira, 2 de abril de 2008

África minha, África tua...

Em pequena, lembro-me de uma colecção de livros, que penso ainda existir, cuja protagonista era a Anita. A Anita era uma moça que teimava em não crescer e que partilhava com os seus pequenos e fiéis leitores as suas inúmeras aventuras: Anita vai à escola, Anita no Japão, Anita no Carnaval e ronhonhó por aí a fora...

Não costumo ver os espaços informativos televisivos. Tenho por norma reservar à televisão uma função nobre, de estupidificação diária. Porém, com a rádio é um pouco diferente. Por preguiça, está sempre sintonizada na Antena 1 e impera em quase todos os cantos da casa (cozinha, quarto, escritório, casa de banho). É automático chegar a alguma dessas divisões é clic ligar o rádio. Por azar, desventura, destino (ou o que quer que seja), calhei de apanhar por duas vezes (porque o programa repete) a entrevista do senhor Presidente da República à Maria de Flor Pedroso, em terras Moçambicanas. Ora, à primeira audição, ficou a perplexidade, à segunda, instalou-se a exasperação, à terceira (em podcast, disponível no site da Antena 1, http://ww1.rtp.pt/multimedia/index.php?prog=1010) uma saudável curiosidade antropológica. Reza assim o excerto que teimou em perseguir-me:

"(...)
Cavaco Silva - Não se resolvem as dificuldades com esses pedidos de desculpa (…). Não está na minha maneira de ser. Eu acho que é coisas concretas (…). E eu trouxe, como prenda, 20 quilos de lápis sabe?
Maria Flor Pedroso - Lápis?
CS - Lápis, canetas, esferográficas, réguas, material escolar…
MFP - Mas foi comprado pela Presidência ou foi oferecido por alguma?
CS - Não, trouxe da presidência. (…) Agora, quando fui, na ilha onde estivemos a passar férias com o meus filhos, os meus netos voltaram a Portugal só com uma camisa, porque tudo o resto demos… Eles foram à escola, os meus netos foram à escola. Andaram 7 quilómetros para ir à escola. E também demos todas as nossas canetas e os nossos lápis. Tudo aquilo que… Os professores vieram ter connosco, depois. Convidamos os professores. Deixamos tudo aquilo que podíamos. Tínhamos comprado em Lisboa 5 quilos de rebuçados. Também foi uma festa enorme. Para além do jogo de futebol que ocorreu. Também participei numa pescaria, lá, com os, os, nativos da ilha. Muito engraçado! (…) Eu acho que temos facilidade de comunicação com estes povos africanos! (…) Eu gosto muito de África. Não me esquece um dos filmes que eu nunca mais esquecerei na minha vida é África Minha.
(…)
MFP - Senhor presidente, estas entrevistas costumam terminar com uma música à escolha do convidado. (…) Por isso, pedia-lhe para indicar a música que gostaria de ouvir no final desta conversa
CS - Sabe, eu seria tentado a indicar uma música clássica do Mozart, mas isso podia ser um pouco maçudo para os ouvintes. E, por isso, coloque uma música dos Beatles. Pode colocar o Yellow Submarine."

De facto, a retórica feita "desculpem-lá-qualquer-coisinha-derivado-de-alguns-anitos-de-colonialismo-brando (porque bárbaro foi o dos outros)" não acrescenta, nem transforma grande coisa. Mas, quando CS se reportava a coisas concretas, não sei, pensei em algo diferente de 20 quilos de lápis, canetas e réguas. Do mesmo modo que a festa, proporcionada pelos 5 quilos de rebuçados comprados na metrópole, continua a não consubstanciar a minha ideia de coisas concretas... Por seu turno, a pescaria com os nativos deixou-me mesmo... ehhh nervosa e quase envergonhada (lembrando-me as situações de convívio social em que alguém que conhecemos despeja uma qualquer barbaridade e, por transferência, o embaraço recai em nós, como se a frase tivesse sido articulada pelos nosso lábios). As operações de cosmética linguística, que eliminam algumas expressões tidas como politicamente incorrectas, não passam disso: embelezamento superficial. Mas, habituei-me a elas e perante a expressão nativos senti o peeling do etnocentrismo a descolar... Claro, no final da entrevista, tranquilizei-me quando percebi que nativos é o que somos, aos olhos paternalísticos do senhor Presidente de todos nós (e de além mar). Antecipando as nossas limitações e poupando-nos a um esforço de boa vontade cultural (já que não nos tinha preservado da partilha da sua messiânica boa vontade social junto dos pobrezinhos), o senhor Presidente deu-nos o Submarino Amarelo em vez da maçuda cantilena de um tal de Mozart. É sempre motivo de festa quando nos dão assim... um rebuçado.

E como é que se diz, Anita? Kanimambo, senhor presidente.

2 comentários:

Osga disse...

Assim que disseste a "Anita" tive uma analepse mental!

Eu era terrível com a Anita pois escondia sempre os livros à minha irmã!(os rapazes são para isto mesmo ) O mais giros daqueles livros é que ainda hoje as minhas primas os lêem.

:)

PS: Estes post´s fazem-me ver que estou a ficar velho!

Anónimo disse...

Txiiii a Anita... ainda lá tenho os livros em casa dos meus pais! Agora até anda a circular via e-mail a proposta de umas novas versões...:)

Quanto a esta entrevista.. meu Deus! É de bradar aos Céus! Até fui confirmar a data pensando que era alguma brincadeira do dia das mentiras! Não seria caso de lhe pedir para enfiar os 20 kilos de material escolar...
A escolha do Submarino Amarelo é ouro sobre azul; depois de uma entrevista destas a meter água, não poderia haver título mais sugestivo!