quarta-feira, 23 de abril de 2008

Feito por medida

Tal como o governo, em tempos de crise, corto com as despesas da rubrica Coisas-Culturais-Sem-as-Quais-Ainda-Assim-Consigo-Respirar. O meu orçamento segue, actualmente, um plano de Corpo Danone e exclui as excedentárias calorias das despesas dos concertos. Foi obrigatório abrir uma excepção para o concerto dos Portishead (10 anos de fome mereciam uma iguaria). Será igualmente imperativo interromper a dieta para receber Celso Fonseca, no dia 21 de Maio, no Cinema Batalha.

Tenho, há muitos anos, um caso de paixão assumida com muita da música que atravessa o Atlântico e que aqui desagua, num português cantado com açúcar na boca.

Descobri o Celso Fonseca em 2002. Trabalhava em part-time na loja de discos do aeroporto. Agora, não sei como é que aquilo anda, mas, na altura, era um verdadeiro apeadeiro. Pouquíssimo voos, menos vendas ainda. Portanto, ocupava as horas a ler, a descobrir música e a enxotar os poucos clientes que lá se atreviam a entrar. Foi aí que percebi uma (des)orientação vocacional: nunca na vida poderia depender de uma função comercial para comer.
“Oh menina, vou levar este. Mas, aqui é mais barato, não é?”
“Ehh, olhe, nem por isso… Se vai para Lisboa e não tem pressa, veja na Fnac” (o que é que eu havia de dizer?!?)

Lá, no meio dos discos e da minha gerente brasileira, encontrei-me com Juventude – Slow Motion Bossa Nova (disco de 2001, gravado em parceria com Ronaldo Bastos). Marcado por um dos acontecimentos mais tristes que já me assolou (sobre o qual, curiosamente, passam em breve 6 anos), para mim, 2002 foi annus horribilis. Esse disco, que fala do encontro, do amor, da partida e do desapego (e de uma estadia em Espanha, T., parece uma música feita para nós, meu querido), esse disco foi uma das bonitas flores que, nesse ano agreste, ousou despontar. Esse disco ofereci-o, pelo menos, a 4 pessoas. Há um prazer que cresce como uma manhã com sol, na partilha do que se ama, com quem se ama.

2002 passou-se e 2003, que chegava prenhe de promessas e de esperança, revelou-se estranhamente estéril e sombrio. Em momentos de desapontamento e de desilusão com os outros (ou melhor, com alguns-outros), procuro alimentar a (infundada, claro está) mitomania do estou-sozinha-e-não-preciso-de-ninguém. Desafio-me com inofensivos Himalayas, cuja aprendizagem em escalada solitária imagino vital. Foi assim, por exemplo, com o cinema, situação que, durante muito tempo, só imaginava acompanhada. Hoje, confesso que é coisa que nem me ocorre – o que às vezes me traz dissabores, “atão foste ao ciné e num dizes nada?”. Foi assim com o hábito de estar sozinha em cafés. Aliás, acho que comecei a fumar um pouco por isso, para tentar driblar o desconforto da situação (estava feita se fosse agora…). Ainda há muita montanha para escalar (teatro, bares, discotecas, férias…).
Abalançar-me sozinha para o concerto do Celso no (extinto) Hard Club, na ribeira de Gaia, foi também uma montanha social alcançada (serra, vá… monte, ok… pronto, era um só pequeno degrau). É patético, bem sei, mas, na altura, chegar lá e estar sozinha num espaço e num contexto que, no mínimo, pedia um par, foi assim uma pequena vitória.

O concerto era minimal: o Celso (que é um homem assim a fugir pó feiinho, com as suas calças de ganga com 2 anos em cima e umas sapatilhas que já levavam 4) e, claro, o seu violão. Mas, nada mais era preciso para planar naquela voz doce, morena e sublime. Na deliciosa “Feito prá você”, normalmente, é a Jussara Silveira quem o acompanha. Como ela não estava, (com certeza, para desespero de quem se encontrava ao meu lado) fiz um dueto com ele, cantado assim em jeito de oração pelo despontar do momento em que se decreta o fim da solidão, porque se descobre um braço esculpido para encaixar com perfeição no entalhe da curva do nosso pescoço, um braço que grita fui feito prá você...

Onde vai parar, o que o amor vai me fazer
Vai me embriagar, chega a doer de tanto bem
Quando estou feliz, me acostumei a solidão
Chega um novo amor, me desmantela o coração

Hoje eu sei do cor o que o amor vai me trazer
Se me faz sonhar depois me acorda prá viver
Vive prá me dar a ilusão de tudo ser
Tenho a sensação de que fui feito prá você

Foto: Celso Fonseca, por Priscilla Franco
(bonito, bonito era isto ter um botãozinho para ouvir a musiqueta, mas ainda sou uma analfablogobeta... Fica o link :

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