quarta-feira, 26 de março de 2008

Viver (também) é recordar…


Ao contrário do que Vítor Espadinha proclama, não acredito que recordar seja viver, mas sei que viver também passa aí, por recordar… O concerto dos Portishead a que hoje vou assistir (sim, eu tenho bilhete para a plateia… há muito tempo) é também um exercício de nostalgia.

Dummy, o primeiro álbum da banda, foi meu primeiro Compact Disc e foi também o primeiro presente do meu primeiro namorado. Perdi a conta das vezes que em que me arrastei com aquela voz, pelas paisagens melancólicas, pontuadas por tonalidades cinzentas, ora escuras, ora expoentes exacerbados de luminosidade.

Em 97, tinha entrado para a faculdade e, entre os colegas de curso, destacava-se o N., inicialmente, por apenas me ter resgatado da massa anónima das restantes criaturas que por ali se juntavam. Aproximamo-nos de uma forma lenta, alimentada por horas de cafés e chávenas de conversas e por matinés de cinema que, sem dificuldade, se sobrepunham ao horário das cadeiras mais chatas. Durante muito, mas mesmo muito tempo, eu não percebi o que é que aquele homem descobria em mim que lhe agradava e que o forçava a ficar, a cativar-me. Na altura, ele era 8 anos mais velho do que eu. Naturalmente, hoje essa diferença cronológica é igual, mas há dez anos atrás, eu tinha apenas 18 e, perante ele, nada de relevante para contar, nada de essencial a acrescentar-lhe, o que dilatava distância a que dele me via.

Percebi há algum tempo que as pessoas por quem me enamorei partilham de algo em comum: a capacidade de me despertarem algum tipo de admiração. Há algo em todas elas que me maravilha e que me é estranho. Algo que eu considero inalcançável, inatingível, raro e belo. Algo que eu quero, que desejo, que anseio por incorporar em mim. No caso do N., esse assombro nascia no reduto intelectual, na erudição que eu lhe reconhecia, na capacidade que eu testemunhava de articulação de toda a sua experiência e saber para a produção de um sentido e de inteligibilidade do mundo.

Acho que nunca lhe disse isto, e duvido que ele suspeite, mas só muito recentemente, me sinto realmente de igual para igual numa conversa com ele, sem complexos, sem receios de me espalhar ao comprido numa imbecilidade qualquer. Não porque tenha deixado de ser imbecil e ignorante, mas porque percebi que, entre nós (como em todas as relações humanas autênticas) o que é nevrálgico, na intimidade que se tece, não é o conteúdo. Não é relevante o número de livros que se terá lido, os filmes que se terão visto, as viagens que se realizaram... A base do nosso entendimento residia na forma. No modo cúmplice como comunicávamos de improviso e sem pauta nos instalávamos como velhos conhecidos num sentido de humor partilhado. No riso, na gargalhada fácil que despertávamos no outro, a partir do elemento quotidiano mais banal ou a partir de um tabu, de um assunto interdito, de um acontecimento traumático e designado pelos outros como coisa séria, com a qual não se brinca… Esse era (e é) o ponto do nosso entendimento.

A partir daí, foi fácil concluir que estava apaixonada, mais fácil ainda reconhecer um desejo crescente, primordial e desconhecido que apenas o corpo poderia aplacar. Foi numa sessão do FantasPorto, Blue Velvet do David Linch na tela, e uma te(n)são que crescia entre nós como arame farpado, já doía estarmos próximos e não nos tocarmos. Esse foi o primeiro beijo e uma das maiores descargas de adrenalina, prazer e sensualidade que os meu lábios já testemunharam. A partir de então, as matinés de cinema viram-se trocadas por tardes de sol filtradas na janela do quarto, pela roupa amarrotada que enfeitava o soalho, pelo cabelo em desalinho que nos ligava, suados, exaustos e insaciados. Tenho uma imagem muito nítida de uma dessas tardes. Regressava a casa, no final do dia, num autocarro apinhado de gente remetida de locais de trabalho acinzentados e baços e acreditei genuinamente que teria de me esforçar para ocultar daqueles olhares inquisitivos, o brilho, a lúxuria e a felicidade que exalava do meu corpo.

Nesse verão, há dez anos, os Portishead vieram cá, ao festival do Sudoeste. As amarras parentais não me permitiram estar lá com ele, a ouvi-los. Recebi um postal que dizia “Nobody loves like you do”… Dez anos depois, sabemos que não foi assim. Mas, sei que houve um dia em que também o foi e isso é meu, intrínseco e indissolúvel…

To pretend no one can find,
The fallacies of morning rose,
Forbidden fruit, hidden eyes,
Courtesies that I despise in me
Take a ride, take a shot now.

‘Cause nobody loves me,
It's true,
Not like you do.

Covered by the blind belief,
That fantasies of sinful screens,
Bear the facts, assume the dye,
End the vows no need to lie, enjoy,
Take a ride, take a shot now.

‘Cause nobody loves me,
It's true,
Not like you do.

Who oo am I, what and why?
‘Cause all I have left is my memories of yesterday,
Ohh these sour times.

‘Cause nobody loves me,
It's true,
Not like you do.

After time the bitter taste,
Of innocence decent or race,
Scattered seed, buried lives,
Mysteries of our disguise revolve,
Circumstance will decide.

‘Cause nobody loves me,
It's true,
Not like you do
(Sour Times, Portishead)

8 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Ervi Mendel disse...

E mais um belo post! É da Primavera?

Ervi

PS: Os "N" nunca dão nada, experimenta os "P".

Clepsydra disse...

Da primavera não será (porque o aquecimento global troca-nos as voltas e as estações). No máximo, será de uma grande vontade de receber essa Primavera...

PS: Já percorri o alfabeto. Vou regressar ao "A". Mais uma volta, mais uma viagem...

Ervi Mendel disse...

O alfabeto como o "K","W" e "Y" ou sem? :)

Clepsydra disse...

"K"abrão
"Y"mberbe
"W"... oh, diacho, acho que saltei este...

Ervi Mendel disse...

"Wanker", talvez ? :D

Anónimo disse...

Este é definitivamente o melhor blog que alguma vez li. E olha que já li muitos muitos, mas tantos que só o continuo a fazer porque ainda nao acabei de ler este. È assustador como alguém consegue dialogar, falar NAS palavras como tu o fazes. É realmente insaciável a vontade que tenho em o alcançar mas também é verdade que viver não é só recordar como a vontade não é apenas a virtude. PARABÉNS MESMO CLEPSYDRA! DEFINITIVAMENTE O NOBEL DA PALAVRA É TEU;)

Clepsydra disse...

Bunny,
Este é seguramente um elogios mais rasgados que este blog já recebeu. Muito obrigada! É bom saber que a vontade de transmitir, comunicar, falar, por vezes, segue um curso virtuoso, nesse veículo incerto, e tantas vezes naufragante, que são as palavras. Obrigada!