quinta-feira, 29 de maio de 2008

Vuelvo al sur

Vuelvo al Sur,
como se vuelve siempre al amor,
vuelvo a vos,
con mi deseo, con mi temor...

Era bom, não era?
Pois, mas este regresso ao sul, não para aquilo que o Piazzolla pensa…
Os compromissos laborais empurram-me para terras alentejanas. Se estivesse bom tempo, seguramente, passaria lá o fim-de-semana. Mas, com este Inverno que insiste em não perceber que já não é bem-vindo, não há nada a fazer. Excepto, claro… deliciar-me com aquele pão divino, as azeitonas, as migas, a açorda, a carninha de porco preto… nham, nham.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Crash

Após uma semana de subjectivo mal-estar difuso, de origem esparsa e vagamente compreendida, sucede-se o culminar objectivo e factual da indisposição.
A sexta-feira anunciava-se precocemente finita, após estadia prolongada em funesto local de trabalho. Os amigos, mais concretamente, o apelo genuíno de uma amiga, fizeram-me adiar o projecto acalentado de ir para casa às onze e meia (a uma sexta à noite!! Não me recordo da última vez que tal aconteceu). O acto de protelar o regresso a casa sucedeu-se hora após hora, acontecendo apenas às seis e meia da manhã. Já o dia despontava e as ruas húmidas e cinzentas da cidade acolhiam tímidos movimentos antagónicos: uns encetavam o desejado regresso a casa e o encontro já atrasado com o sono; outros, abandonavam os braços de Morfeu e iniciavam o desfile dos compromissos laborais.
Ia assim, absorta em pensamentos inócuos e incompletos, que estancavam num semáforo vermelho. Os semáforos costumam ser os locais onde testo os meus reflexos Fittipaldinescos: fico muito atenta às movimentações luminosas e, assim, que a mudança ocorre, o carro desloca-se com uma primeira ágil e desenvolta transformação de velocidade. Normalmente, sorrio satisfeita: fui a primeira a arrancar. Costuma durar pouco, porque o meu chasso utilitário rapidamente é ultrapassado por cilindradas capitalistas: Humpf! Já me tinha detido algumas vezes a pensar no movimento oposto: isto é, nos colegas que dilatam a permissão do verde, até ao amarelo intermitente e ao proibitivo vermelho. Estas vontades contrárias um dia haveriam de chocar. Um dia, foi no sábado…



Já em movimento, pelo canto do olho, percebi, em instantes temporais que se dilatavam, que o choque seria inevitável. Em transversal e hiper estado de alerta, o corpo reage com uma inusitada rapidez e as sinapses sucedem-se de uma forma alucinante. Recordo esses instantes, como longos e lentos momentos em que pude pesar diversas alternativas e decisões: travar e, ainda assim, saber de antemão que não seria suficiente… Crash! Menos mal, foi só chapa, gritava o meu lado optimista… Ai o carago, vociferava o meu lado realista (e tripeiro), enquanto constatava que a apólice do meu colega condutor se encontrava caducada… Coitado do senhor, vê-se pelo carro de um modelo que já não se fabrica, pela ausência de alguma dentição frontal e pelo horário madrugador de labuta ao fim-de-semana que não tem pais ricos, não ganhou a lotaria e o BES não lhe empresta 5 euros que sejam, gritava a minha costela das questões sociais de esquerda. Não tem seguro, vai de transportes públicos e não se arrisca a passar um vermelho e a prensar-me em chapa barata, vociferava a minha costela individualista e self-made-man de direita.

Não ando com tempo, nem espaço mental para resolver aporias, mas já me fui mentalizando que o subsídio de férias tem destino certo: vai para a garagem do meu mecânico e eu fico a beber daiquiris em praias longínquas e paradisíacas? Não, copos de água, pedidos com jeito e especial favor numa barraca das praias de Leça, com vista para a refinaria.
Até para o azar é preciso ter sorte ou dinheiro!
Foto: "Semáforo", de Padroense

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Acha-me!


"Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor

que te procuram."


Tríptico II, Herberto Helder


Foto: Camaaño Castro

terça-feira, 20 de maio de 2008

Cansa-me (outra vez...quem sabe)



Cansa-me o que se repete, mesmo quando não é igual. Cansa-me o movimento idêntico, a replicação cansada do gesto desacreditado. Cansa-me o precário equilíbrio oscilante, negociado sem rede. Cansam-me as falsas partidas e as advertências (sempre) tardias do juiz de linha, porque o empenho já se encontrava depositado em todo o mais ínfimo músculo em tensão. Hoje, não quero mais falsos começos. Hoje, não quero mais fins disfarçados de (re)inícios requentados, celebrados com a cerimónia da refeição em casa estranha. Amanhã, não sei… Mas, hoje é o desafio da permanência provisória, da perenidade temporária, do infinito a prazo que quero aprender.
Ainda assim, custa dizer adeus, quando o sorriso de um olá recente ainda jaz na boca.

Foto: A Escada do Desespero de Arlinda Mestre

Os feios que me perdoem...

... mas, beleza é fundamental e, ervilhicamente falando, esta blogger é despigmentadamente bonita... Ele lá sabe...
Eu sei que fico (como dizem os brasileiros) "sem jeito" perante cumprimentos e elogios. Ocorre-me um insuficiente, muito ruborizado e lírico, obrigada de menina...

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O tempo do presente

Um presente transporta sempre consigo uma dedicatória acoplada. Com uma oferenda, estabelecemos uma ponte física entre nós e o Outro: há uma coisa, escolhida, tocada por nós que se desloca até ao toque do Outro, escolhido óbvio do nosso desejo, da nossa vontade, da nossa preferência. A intenção da dedicação está lá também, muda ou em letras capitalmente escritas. Tem de ser medida até à mais ínfima grama: não a queremos inócua e sem significado, mas também não a desejamos traidora, delatora total do delírio em que nos encontramos.

O meu presente foi recebido na sexta-feira e, nesse dia, o encontro deu-se sem marcação prévia, não por obra e graça do destino, mas porque os passos, nesta cidade, tendem a ser decalcadamente idênticos. Esqueçamos a explicação lógica e agarremo-nos à deslumbrante força da racionalidade do destino. Sem falar, sem combinar, estamos aqui, outra vez, no espaço onde a dança do corpo nos juntou. Dançamos novamente… “Tinha acabado de te enviar uma mensagem…” Afirmação sincronicamente confirmada pela vibração sentida no bolso da trás das minhas calças. “Mais uma vez, estou neste antro de perdição e só penso em ti. Só em Ti! Quem me dera estares aqui. Vem ter comigo! Beijos… dos nossos”. E eu, ali estava, antecipando as ordens desconhecidas daquela sms, ainda incrédula com aquela coincidência, mais do que provável…





Fim de festa. Dia aberto na cidade ainda a espreguiçar-se, ainda a esboçar movimentos tímidos e frios. Pequeno-almoço na confeitaria possível, junto ao ícone do burgo. Falamos da coincidência deste encontro. Falamos da dedicatória acoplada ao presente que te havia enviado… Os olhos, agora humedecidos, denunciam o emocionado agrado que ele te causou. A boca, ainda lenta e adormecida pelo álcool, adverte cautela, pronuncia-se sobre “o cuidado” que eu devo ter… O indizivelmente paternalista, “tem cuidado contigo”, costuma servir uma de duas funções: uma vez dito, iliba o emissor de eventuais responsabilidades sobre o que possa vir a acontecer, por outro lado, o cuidado feito voz, não escolhe destinatário, é uma advertência para quem o diz também (não me posso esquecer que preciso ter cuidado).

Seguem-se mais frases habitualmente usadas em enredos desta natureza: “não tenho nada para dar”; “não tenho expectativas”; “não me quero envolver”. Surge a vaga e insuficiente explicação da dor passada, como sustentáculo da postura que se procura consolidar no presente e no futuro. Como se a vida se amordaçasse com os frágeis açaimes que lhe destinamos…

Neste caminho, duas vias possíveis emergem com clareza. Vou ignorar, registar e assobiar para o lado, é a minha história e quem define o argumento sou eu. Escolho a outra e insisto. Eu também não sei o que tenho para dar. A última coisa que procurava e achava que iria encontrar neste momento seria a intenção de me envolver. Mas, eu tenho vontade de me deixar levar, de me deixar ir nesta história, cujo início anunciava precocemente um fim. E não tem sido assim, não é? Então, o que eu te pergunto é o que é que tencionas fazer quando, e se, o momento se dilatar para outros espaços: vais decepá-lo ou permitir que ele cresça, sem agenda e programa definido?

Há uns olhos que me fitam com incredulidade, há um abraço que me ampara o corpo que treme no declive dessa manhã fria. “Ainda por cima, és brilhante, és tão inteligente. Não podias ser uma burrinha qualquer?!”. Sorrio, afastando o embaraço com uma piada transparente: “Tu é que insistes em ignorar as minhas raízes capilarmente loiras”.

Olha para mim, a ser burra que nem um cepo e a dar-te a mão e a puxar-te para o interior do táxi, enquanto anuncio a minha morada. Olha para a torre dos Clérigos que nos observa lá do alto, enquanto se interroga: por que é as pessoas insistem em complicar o que é simples, o que é claro, por que é se refugiam em esconderijos frágeis e armaduras inúteis… A Torre a antecipar-se à minha espiral reflexiva e adivinhar a pena que sentiria por saber que este não é o momento para eu resgatar futuros, junto a quem insiste por decreto, em não descolar de passados e a permitir-se apenas mergulhar timidamente no cálido líquido do presente. A Torre a lamentar, antes de mim, que não me apeteça lançar-me nesse longo e potenciamente infrutífero empreendimento demonstrativo de que 1 e 1, também podem ser 3...

Foto: Paulo Pimenta

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Especulativamente

Talvez com excepção do reduto bolsista, creio que a actividade especulativa, raramente gera dividendos proveitosos. Dou comigo a fazê-lo, sem ganhar nada, mas nada, com isso…

Facto: Enviei a dita cartinha e o dito cedêzinho, a quem de direito e…

Espiral especulativa: Os CTT são um serviço terceiro-mundista, funcionando com atrasos colossais e ainda não chegou. Ou... Os CTT estão calibrados como um relógio suíço e, no dia seguinte, a encomenda repousava na caixa do destinatário, mas… A carta chegou e ele ainda não foi ver o correio… resta esperar. Ou... A carta chegou, ele foi ver o correio e… Pensou, “iac, que ideia peregrina”, nunca mais quero falar com esta maluca". Ou... Pensou “iac, que ideia peregrina”, ver se lhe pergunto o que lhe passou pela cabeça, mas mais tarde, quando a medicação lhe estiver a fazer efeito". Ou... Pensou, “olha, é fofo, que ideia gira, mulher linda, brilhante, sublime… Como é que lhe hei-de retribuir… Vou começar por me prostrar aos seus pés, subindo por aí a fora..."

Puff! Vou ali, resgatar as minhas economias, no valor de 5 euros e comprar duas acções da Galp, pelo menos sei que aí estarei em alta.

Foto: APF (ou lá o que é)...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Wishful thinking

"Maio molhado, verão ensolarado!"

Oxalá exista este ditado popular, acabado de inventar...

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O cubo e o mágico

Em jeito de bombeira, dou comigo constantemente a apagar os pequenos fogos que pululam na instituição pirómana em que laboro. Um dos últimos visava deslocar-me à apresentação pública de um programa de financiamento em que figuraria a senhora ministra da educação. Aprecio particularmente a forma como a questão é colocada às 11 da manhã, por quem melhor do que ninguém deveria conhecer o meu trabalho (vulgo patrão, eufemisticamente designado de coordenador): “tens assim um dia muito ocupado?”, “nã, eu só vim cá ver a bola e apreciar o serviço da máquina de vending, inebria-me esta águazinha acastanhada de bebida com sabor a café…
Às 15 horas lá estava eu no dito sítio… Bom, na verdade, cheguei passavam 20 minutos, porque estas coisas nunca começam a horas, justamente, porque pessoas como eu nunca se apresentam a horas e (pescadinha de rabo na boca) segue por aí a fora... Sala acanhada, ministra igual a si própria, inexpressiva e impertubável com o facto de a comunidade científica aqui, da terra, se fazer representar por uma dúzia de gatos pingados (eram mesmo 12, eu contei!). A peça não prometia: não gostei do cenário e ainda menos das personagens, ostentando figurinos tacanhos e cinzentos que hostilizavam visualmente as minhas calças de ganga e respectivas sapatilhas. Os olhares reprovadores acalmaram-se na repetição de um provável mantra silencioso: “ah-é-jovem-e-tal… ah-é-jovem-e-tal...”
Ora muito bem, aquilo devidamente espremido é o seguinte: diz que o ministério da educação, de há uns tempos a esta parte, recolhe dados, informações, estatísticas, rankings e mai-não-sei-o-quê. Diz que é preciso, porque há uma tal de União Europeia e OCDE que, vira e mexe, pedem os numerozinhos para ver-se-o-meu-é-maior-que-o-teu... Diz que aqui, o povo lusitano, não fica lá muito favorecido na estatística foto de família. Oh diacho! Há um tal insucesso escolar que se cola ao país, como um adolescente se agarra ao seu telemóvel. Mas, o que é que sucede: aquela parafernália de dados pode ser tratada de formas muito diferentes (os números são assim volúveis, voláteis... enfim, pequenas putas moldáveis aos caprichos dos clientes). Diz que a “comunidade científica” domina esta cena das análises. Vai daí, tomai e comei um programa de financiamento, com panfleto político acoplado e tudo (só não lê quem não quer… embora, tal como nos contratos de créditos manhosos, estas letras sejam pequeninas). Estes dados, a que actualmente ninguém tem acesso, serão protocolarmente cedidos às instituições que tutelem as candidaturas aprovadas. Claro está, esses dados serão unicamente tratados de acordo com as linhas de investigação aprovadas à luz dos critérios e finalidades prescritos pelo ministério, obviamente.
Não fosse o povo (doutorado na sua maioria, é certo, mas povo, na mesma) não ter percebido, o senhor da Direcção Geral não-sei-das-quantas ilustra o que se pretende, com “um pequeno exemplo”:
Ora vejam aqui, os dados do PISA (estudo internacional sobre os conhecimentos e as competências dos alunos de 15 anos nos domínios da leitura, matemática e ciências). O que é que acontece quando desagregamos estes dados? Como Portugal tem das mais altas taxas de reprovação, há um elevado número de alunos com 15 anos a frequentar o 7º ano de escolaridade, cujo score ronda valores próximos do México e do Brasil. Mas, quando comparamos estes alunos (com 15 anos a frequentar o 7º ano) com os alunos na mesma situação dos países do sul da Europa, nós estamos à frente! (Ah, pois é, entre os que reprovam, ninguém nos bate, pensei). Passa-se o mesmo no 8º ano. No 9º, já não, porque com 15 anos e no 9º ano a coisa já anda ela-por-ela com os outros países. Conclusão: estão a ver como até nem estamos assim tão mal, se estes alunos não tivessem reprovado, os resultados eram muito diferentes (Ahhh! Pois… Ehhh... É só de mim, ou continuamos sem sair do sítio?! )

Mas, eu percebo! Quando eu era mai-nova houve um infeliz qualquer que me ofereceu um cubo mágico. Eu rodava, rodava, rodava e não havia maneira de aquilo ficar direito. O que é que eu fiz? Declarei-me inábil e disposta a aprender, tentando sempre até conseguir? Nã… Tenho muito jeitinho de mãos, descolei os autocolantes coloridos e dispu-los como mandava a regra, alinhados por faces cromaticamente iguais, que disfarçavam a minha incapacidade para resolver o quebra-cabeças. Estava lá, físico, palpável, visível e indesmentivelmente resolvido... Parece, não parece? Pois, mas, não é!

Foto: Helga Carina Correia

terça-feira, 13 de maio de 2008

(des)Encaixilhando


Não me contento com momentos emoldurados, dependurados nas frágeis curvas de ses, estrategicamente colocados nos buracos das paredes, por forma a ocultarem a profundidade de tudo o que poderiam ter sido. Tendo a agarrar os momentos com as duas mãos, espremendo-os até às últimas gotas de possibilidade. Arranco-lhes promessas que ostento como os limites manifestos de um horizonte de possíveis.
Não adianta, não durmo tranquila, não me alimento devidamente, não sossego, sabendo que ali, atrás daquela tela, se encontra uma fractura que grita por ser vivida. Ao contrário do quadro, a fractura raramente é bela. Está ali, rachando a parede e abrindo caminho para uma praia paradisíaca ou para um esgoto a céu aberto. Mas, é tão mais do que o quadro… tem cheiro, tem textura, tem sabor, tem movimento e ruído, com modulações, com o inexpectável, com tudo o que escapa à frame do momento …
Curiosamente, não me arrependo de nenhuma das paredes escavacadas da minha casa. Quando regresso, reponho o quadro, tapo as fendas e durmo apaziaguada, porque ali está somente um quadro, belo, muito belo, belíssimo… mas um quadro que eu já vi(vi).

Nota: Intróito auto-justificativo para o facto de ter "cumprido" com a minha "parte". Se os CTT cumprirem com a sua função, amanhã, há um senhor que, entre a Dica da Semana, a factura do Condomínio e os omnipresentes panfletos da Telepizza/Pizza Hut, receberá um disco do João Gilberto acompanhado de uma carta assim a puxar para (quase) aquele ridículo de que falava o Pessoa. Quando eu me sentir ridícula e com vontade de me enfiar num armário de tanto embaraço, venho aqui, leio a postazinha e... começo a escolher uma, das tantas pontes desta cidade, para me atirar... :)
Foto: Hugo Tinoco

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Quando os pés não descolam do chão

Não sei explicar muito bem o que acontece no agora, no já. Não sei o que é, não sei o que vale. Desconheço quanto pesa. Ignoro se levita ou se deve ser enterrado.

Sei que é uma inesperada nesga de luz cintilante que, comandada por uma vontade sem freios, nem normas, rasga o uniforme cinzento e previsível com que se farda o quotidiano.

É tão… perfeito, é isso! É tão perfeito que não pode ser real, não pode ser palpável, não pode ser a bonança. Porque, se é, então, entretenho-me a antecipar a tempestade e começo a cerrar janelas, a verificar o ferrolho da porta, a contar os mantimentos.

Contenho-me.
As mãos procuraram papel e caneta de tinta preta e desenharam coisas tontas que receio não conseguir partilhar contigo:

J.,
Obrigada, é uma daquelas palavras gastas de tanto uso inútil, circunstancial e oco, porque desprovido de um genuíno sentido de agradecimento. Na realidade, agradecer também não era exactamente o meu propósito. Mas, as palavras têm estas limitações, de apenas esboçarem de uma forma muito imperfeita e grosseira o que pensamos e sentimos.
Feita esta ressalva, aquilo que eu quero dizer, na impossibilidade de inventar uma palavra mais fiel ao que pretendo exprimir, é: obrigada…
Pelas inesperadas, surpreendentes e maravilhosas horas, em que o prazer desaguou em todos os minutos como um oceano, inundando e diluindo o tempo, arrastando-me e fazendo-me transbordar de mim, em ti.
Envio um João (mas este é Gilberto) e, apesar de me fazer viajar, planando na sua voz doce, cheia e sublime, fica a anos luz, do deleite em que tu, mesmo sem palavras, me submerges de uma forma plena, completa… perfeita!

Perdi a conta aos bilhetes, às cartas, às surpresas que, por receio do ridículo, do medo de ser desmesurada, deixei de partilhar com quem de direito. Os destinatários foram-se todos. Mais leves, porque eu fiquei com os excessos, em caixas em que ainda tropeço. Não ficaram por se encontrarem mais ligeiros, não deixaram de partir pelo peso na bagagem e eu fiquei sempre com algo a mais, que não me pertence, a não ser que seja partilhado.

To send or not to send, talvez dependa disto: de deixar de me tentar encaixar naquilo que eu acho que o outro quer, deseja ou projecta. Eu sou assim, desmedida e ridiculamente romântica, sonhadora, arrebatada... Talvez, quem não goste ou não possua caixas para partilhar os excessos (com medos ou sem eles)... Talvez, não deva ficar...
Foto: "Envelhece-se mais devagar ao anoitecer" de Mariah.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Antes selo que parecê-lo (trocadilho inevitável)

Podemos retirar-nos do mundo, mas o mundo não se retira de nós… Vai daí, hoje, saí mais demoradamente do casulo, onde tenho desenvolvido o meu trabalho de patchwork pseudo-científico (à laia de catarse, daqui a uns tempos, esse empreendimento ainda deve vir a originar um post ou outro…). Não resisti a passear pelas esquinas bloguísticas onde costumo parar e descobri um postal da Xinha, com selo e tudo!

Oh pra ele:

Bom, diz que o selo tem regras, mas as regras, em regra, só valem o que assim o entendermos. Então o selado (no caso, moi), deverá, por sua vez, selar 10 blogs amigos (supostamente, and so on... ou não). Antes de mais, impõe-se uma ressalva, eu sou demasiado nova nestas lides para ter 10 blogs amigos. Mas, pelas diferentes razões que apontarei, destacaram-se de imediato:

Depois do Trauma
Notável iniciativa de alguém (não menos) notável. Trata-se, sobretudo, de um espaço de partilha de informação actualizada sobre a pesquisa que se encontra a realizar, no domínio da sexualidade de lesionados vértebro-medulares. Um dos posts inspirou-me um e-mail que enviei sem acalentar grande expectativa de resposta. Houve resposta, houve novas perguntas e novas respostas. Houve uma surpreendente disponibilidade para um almoço, com vista para o mar e para o tudo o resto que a minha vista cansada não conseguia enxergar. Curiosamente, foi através dessa troca de e-mails que redescobri a capacidade desocultadora que o exercício de escrita pode conter. Daqui à criação do blog, foi um pequeno passo. A partilha da existência deste espaço que (pelo menos, por agora) considero íntimo e privado com a Ana, foi a minha forma (necessariamente) incompleta e insuficiente de dizer, obrigada, pelas palavras firmes como pedra, embaladas com fitas de veludo.
A Maça de Eva
Já não sei porquê, recebo uma espécie de newsletter da Sapo. Também não interessa, porque deixei de estranhar as ofertas com que o e-mail, volta e meia, me presenteia, ele é enlarge your penis, lotaria espanhola, viagra ao preço da chuva... Mas, mais estranho é, um dia, eu ter lido a tal newsletter e, nesse dia, encontrar boa fruta nos blogs que apareciam recomendados. Qual Eva, que não resiste à tentação, fiquei com a maça e, desde então, não dispenso dentadas (quase) diárias em maças (sobretudo envenenadas).
Bad Girls Go Everywhere
Inicialmente, confesso, foi pelo título, se as raparigas más vão para toda a parte, então também quero. Rapidamente, se esquecem as raparigas e se fixa Bad, personagem/autora (fronteira em constante negociação, parece-me).
Ervilhas Albinas
Para além dos blogs, gosto muito de ler os comentários. Ora, a ervilhinha aparecia amiúde a botar faladura nos posts que visitava. Fui cuscar… Ainda me levou uns dias a ler o blog de uma ponta à outra, mas tal facto deveu-se aos constantes intervalos para rir. Começo a ronda (quase) diária dos meus blogs aqui - é boa disposição garantida!
O Amor é um Lugar Estranho
Também vim aqui a parar pelo título, claro está. Ou não fosse Lost in Translation um dos meus filmes de eleição. Estou a falar de blogs amigos, mas, às vezes, há o risco de confundirmos o blog com a pessoa (que não conhecemos de lado nenhum). Curiosamente, dizendo muito de si e bem mais das suas circunstâcias, ouso achar que ali, na Kitty, está uma pessoa com quem fora da blogosfera poderia ser amiga.
Eu e o Meu Umbigo
Gosto da escrita despretensiosa, sem agenda (nunca se sabe o assunto que poderá originar um post) e da língua sem papos para dizer o que pensa.
Tinha fechado, pouco tempo depois de eu o ter descoberto. Felizmente, reabriu e, a julgar pelos dois últimos posts, com um fôlego redobrado. Para mim, é quem melhor pinta com palavras em tela blogosférica as ínfimas nuances com que o amor se pode apresentar.
Paradoxos
Sou fã desta palavra e encontrei-a nos blogues recomendados da Xinha. E, "como amigo do meu amigo, meu amigo é", espreitei e seria impossível não me perder nesse pomar, em que se rouba sempre uma laranja suculenta para alimentar a alma.
Estações Diferentes
Descoberta mais recente de onde brota perplexidade amiga, porque vem de mãos dadas com a reflexão.
Mal Menor
Se a inteligência, servida com doses massivas de humor causticamente subversivo, pagasse imposto, então a DGCI não largaria este senhor!

domingo, 4 de maio de 2008

T.

Porto, 29 de Abril de 2008
Hoje, nada correu bem, nada correu de acordo com o planeado (correspondência tonta entre o planeado e o bem). Só agora, ao fim do dia, rendida perante o indesmentível facto de a realidade escapar à grelha que lhe havia desenhado, de a realidade insistir em ser má, percebi. Saltei de fogo em fogo, com pequenos baldes de água que nada resolveram, porque havia sempre uma chama lá, mais à frente, que eu teimava em não ver, à qual não me lembrava de chegar. Só agora parei e vi que arde a memória da tua ausência.

Fez hoje seis anos que a inquietação, que durou todo o dia no meu corpo, me lembrava o que os chamamentos prosaicos do quotidiano teimavam em calar. Fez hoje seis anos, precisamente... Apesar de uma meia dúzia de vezes ter atravessado a data, nunca me consigo lembrar do dia... 29, 30, 1, 2. Foi confuso, porque a autópsia não foi contornada, o feriado manteve-se imóvel e o ritual fúnebre sucedeu a tudo isso... Por isso, confundo o dia exacto... Mas, lembro aquela terça-feira com a exactidão de quem decora a tabuada à força de tantas vezes a repetir. Recordo-a sempre de fora, como se me assistisse em cena, num palco redondo, em que todos os ângulos são possíveis. Vi-os a todos, mas o desfecho teima em persistir, triste.

Vejo-me a ligar-te de véspera. Ouço-te a despachar-me, alegando o mal-estar da tua mãe. Aceito a recusa da minha companhia para o dia seguinte. Sinto que foi estranho, mas nada mais do que isso. Essa noite passou, com as horas de todas as outras. Essa manhã despontou igual às irmãs que nasceram antes dela. Rumar à faculdade, dirigindo-me para Associação de Estudantes (nesse ano, achava-me comprometida e empenhada no movimento colectivo de luta pela mudança... é com cada uma...). Lembro com precisão o ponto do percurso em que me encontrava, quando estranhei não atenderes a minha chamada, mas prossegui. Tentei de novo ao início da tarde, obtendo idêntico resultado. Afastava a preocupação ridícula que infundadamente (insistia eu) se queria instalar. Arredei-a sempre que me falaste do assunto. Arrumei-a sempre, afundando a premissa inicial da tua doença, não permitindo, assim, dar seguimento mental à resolução que mais do que uma vez me anunciaste. Não, já disse. Não!
Portanto, foi com a preocupação estendida do ringue, mas não KO, que digitei o número da tua casa. Estranhei a São a atender o telefone, agitei-me com a voz que tremelicadamente lhe saía da boca: "É a menina Clepsydra? A senhora está aqui num desespero, queria falar consigo, mas não encontrava o número. Ele levou tudo, as agendas todas e ontem já não dormiu cá..."

Recordo-me estática, não compreendendo o mundo que teimava em rodar. Recordo-me falsamente serena e formal a ligar para a morgue, para confirmar a loucura alheia, "Muito boa tarde. Seria possível informar-se se deu entrada ...? Sim, sou parente". E a voz a mudar do outro lado, para um tom formalmente compungido e riscado à força de tanto de se repetir. E a minha loucura a confirmar-se e não a do mundo... E um choro que não dava vazão ao que sentia a preencher-me o corpo. E o grito fundo na garganta como um poço a calar-me a voz...
As informações que detalhavam o processo iam chegando aos poucos. Foi possível saber as horas em levantaste os exames na clínica. Assinalar o ponto da tarde em que informaste que não jantarias em casa. Identificar o horário do avião em que embarcaste para Lisboa. O nome do hotel, o andar e o quarto em que te instalaste. Entre registos, descortinou-se o tempo em que o serviço de quartos te levou um Logan com gelo que adormeceu a réstea de medo que (eventualmente) sentias. Por estimativa forense, foi também possível saber quando é que atravessaste a janela, pisando, vivo, pela última vez, o chão firme. Só não se define a hora em que a reconstituição da tua ausência ocorre. Só não se preenchem nunca completamente os laços da compreensão plena, total e completa. As tuas últimas palavras com destinatários óbvios: a tua mãe, o teu pai invocado, porque já falecido, o teu irmão, a tua irmã e, depois, a amiga, "a tua grande amiga". Eu...

Eram tantas as perguntas que me nasciam orfãs de resposta. Era tão misturado e oscilante o que sentia. Tantos ses aniquilados em duros, desiguais, longos e persistentes combates. À força de tudo isso fui construindo uma certeza instável resignada, na qual me apoiei para voltar a sorrir, a "ser bonita" (como me dizias nas derradeiras palavras que me dirigiste). Ainda assim, às vezes, vacilo, insisto em má, escapando ao que me planeio, insisto em ser feia e choro, molhando a secretária de saudágrimas tuas, muitas, imensas, meu querido!