
Na semana que passou, ao final do dia, perdi-me em busca de uma localidade remota algures na periferia do Porto. Conduzia um pouco à toa, achando que as placas de informação me elucidariam e que a hora de ponta não me atrapalharia. Quando percebi que me encontrava num ponto sem referência dei a busca por terminada e querendo regressar a terra conhecida, vi-me forçada a resgatar um caminho recentemente abandonado que percorria unicamente para encontrar os braços que desejava. Refazer esse caminho, conduziu-me à formulação de pensamentos tontos. Desfilavam no tapete da minha memória os impulsos que outrora me comandavam os passos naquele percurso, os diferentes trajes de desejo com que o corpo se vestia de latejo e palpitação… Aqueles pensamentos magnetizavam aquele local, impeliam-me para aquela casa, “só para confirmar se ela ainda lá estaria”. Avistar aquele carro, confirmando a continuação daquela presença, já descontínua em mim… Prosseguia em controverso colóquio comigo mesma: ir; não ir; vantagens; desvantagens… Até que tu provas, mais uma vez, que as coincidências existem. Tu provas, mais uma vez, que me adivinhas, mesmo sem saberes. Tu resgataste-me desse redemoinho lodacento da memória e atiras-me para um futuro certo e próximo, quente e aconchegante… Peixe grelhado e arroz de tomate cozinhado por ti, para mim?! É claro que quero jantar contigo, só quero jantar contigo…
Tenho resistido à tentação de escrever sobre ti. Tenho tentado evitar depositar as palavras que podem empilhar-se e formar um “nós”. Sim, é sobretudo isso. Parece-me que se não escrever, se não falar do assunto ele não se torna coisa, não assume uma verdadeira existência. E é, tão só, porque me assusta a ideia de perda. Aquela ideia de perda cujo horizonte traçaste com umas, simples, irrepetíveis (quem sabe, até, ocas), palavras. Aquela assustadora e injusta ideia de perder o que não se viveu. Mas, é justamente a viver, a agir, a fazer que temos criado um “nós”, quase sem reticências. Não tenho, nem desejo (salvo em alguns momentos de puro terror de naufrágio) contornar a acção, evitar os momentos, os nossos instantes em que essas palavras parecem um idioma estranho sem qualquer correspondência à realidade. Até agora, a única coisa que pedes é que seja a vontade a ditar a rotina dos nossos encontros: a minha e a tua. Tem sido assim e tem sido tão bom… E foi desse modo que o peixe ganhou cor e gosto, que os misteriosos grãos brancos se imiscuíram crescentemente com a água e o tomate, que o vinho se elegeu para molhar a conversa que entre nós já não cessa. E foi desse modo que esboçamos uma dança quando o Paul Desmond tocava Adeus, que sentamos em uníssono os corpos no sofá e que as mãos se tocaram como faíscas que tudo o resto incendeiam. E foi num rasto de fogo, de terra queimada onde muito mais promete germinar, que nos quedamos na tua cama, como se o meu corpo ali pertencesse e os teus braços tivessem sido concebidos para me embalar até adormecer. Amanheceríamos juntos para um dia comum, para a banalidade que nos preenche e caracteriza no compasso regular e previsível de todos os dias. Enganar o despertador, fintando as horas de levantar, alternar banhos, tomar o pequeno-almoço, fitar-te no elevador e desejar-te: um bom dia… como se todos os dias tivessem sido assim, mas desconhecendo (porque nunca se conhece) como serão os próximos. Quero-te assim também, nessa normalidade idêntica, sem nada de extraordinário, nesse desfiar dos dias que se contam iguais e cujas diferenças apenas se vislumbram através de uma inquietante e rara proximidade, através da frágil teia de intimidade que sem molde e sem planos urdimos sem querer.
Foto: "A inversão do tempo" de Ana Franco.
O primeiro ponto é que mais ninguém te liga, o que é lamentável.
ResponderEliminarO segundo é que já me conseguiste baralhar outra vez. O Tutti-Tutti e o J. são pessoas diferentes? Eu gostava que fossem pois sou adepto da pouca vergonha, mas desconfio que não...
Por fim, continuas a escrever maravilhosamente, razão pela qual eu consigo sobreviver a um post onde se fala de Peixe grelhado e arroz de tomate (aaarrrghh!!!)
beijo
Evita desejos no elevador, ainda acontece como o outro senhor e ficam presos 42 horas! :D
ResponderEliminarErvizinho,
ResponderEliminarConvenhamos que o fluxo de comentários é mais do que justo, atendendo ao fluxo de posts... tenho andado alheada do blog...
Eu também sou uma militante da pouca-vergonha, mas é uma militância teórica, com pouco substracto operativo, shuif... Tutti-tutti com um J.
Já não bastava a aversão às ervilhas, agora também se acrescenta o arroz de tomate e o peixinho grelhado?!
A escrita é como a cozinha, vai melhorando com a prática e a inspiração. Nem uma nem outra têm abundado por aqui, mas obrigada pelo doce elogio escrito.
Beijo malandrinho (como um bom arroz de tomate)
Osga,
ResponderEliminarA adivinhar pensamentos secretos das amigas bloggers?!? Até dei uma vista de olhos pelo já tinha escrivinhado, para confirmar se alguma vez tinha confessado esse desejo ;)
Beijo