segunda-feira, 31 de março de 2008

Seguindo em frente

(em resposta - embora não responda - ao comentário da Teresia)

Através das palavras surge a possibilidade de capturar a realidade e de a enjaular na nossa grelha perceptiva. Não deixa de ser ilusório. A realidade é uma fera brava, um animal selvagem que não admite freios, nem amarras. Domestica-se durante um tempo, mas, quase sempre, quando menos esperamos (ou mesmo quando já só aguardamos e desejamos que tal aconteça), ela, qual leão, mostra a sua raça, quebrando as sólidas barreiras em que a havíamos encaixado.

O post anterior surgiu de um acontecimento concreto, a partir do qual ousei tecer algumas generalizações. Do mesmo modo que existem, pelo menos dois sentidos, virar ou seguir frente, também o protagonismo do movimento é, pelo menos, duplamente partilhado Contudo, tendo aflorado a questão, não me cheguei a colocar do outro lado. Se calhar, porque tenho a ideia de que lá não estive muitas vezes… Admiro a persistência, a determinação e a tenacidade com que algumas pessoas perseguem, um ideal, um objectivo, o ser amado... Curiosamente, não é assim que me vejo…

Na deambulação pelas obscuras vielas em que se estabelecem as relações humanas, trocam-se sinais. Socorremo-nos deles para tentar demonstrar um interesse, ora vago, ora ligeiro, ora intenso, ora arrebatador… (depende do ponto em que se encontra a relação que se cozinha). Simultaneamente, procuramos decifrar os sinais que o outro nos envia. As operações são concomitantes, concorrentes, convergentes, antagónicas, simbióticas, mas sempre delicadas, complexas e, sobretudo, incertas. Anos a fio a tentar falar em comum e não há acordo ortográfico que valha à miríade de dialectos que por aqui pulula. Nesta caótica torre de Babel, para mim, a possível e provisória resolução passa por criar uma verdade própria que se alicerça na força das declarações produzidas e no capital de confiança que lhes deposito. Então, estas declarações têm um valor fiduciário. Por si só, elas nada valem, apenas adquirem valor, porque a minha fé sabe que elas se trocam por um capital de afecto, desejo, amor, etc. Naturalmente, o mercado é sujeito a enormes flutuações e este valor oscila também em função de inúmeros acontecimentos. Declara-se o crash, a falência e a crise quando, procurando trocar os títulos pelo seu valor facial, percebemos que não passam disso, declarações nominais, sem real liquidez e valor de troca.

Mais uma vez, assim dito, parece fácil… Contudo, no jogo dos sinais tudo se complexifica na regra dos porquês: "ao mesmo tempo que se interroga obcecadamente por que motivo não é amado, o sujeito apaixonado vive na convicção de que, na verdade, o objecto amado o ama mas não o diz” (R. Barthes). Neste jogo, ridicularizamo-nos com muita facilidade. Sou a prova viva disso…

Por alturas do Dia dos Namorados, tendo-se já finado o meu, embora eu ainda não o houvesse decretado no Diário da República do coração e habitasse num vazio legal que teimava em não regulamentar, acontecia o seguinte: a outra parte emitia sinais. A pessoa em causa, apresentava-se no Messenger, acompanhada de legendas que eu, porque ainda amava, me julgava serem dirigidas. Andei a ruminar naquelas legendas (eu, avisei que era ridículo) durante uma semana e o corolário do ruminanço ocorreu no dia 14 de Fevereiro. Saindo de casa de manhã, pensando “hoje é um belo dia para a emissão de mais um sinal que será, sem dúvida inequívoco”, volvidos alguns metros, aproximo-me de uma rotunda onde se edifica um viaduto. Aí, um lençol branco prendia a minha atenção, bem como a de todos os automobilistas. E como uma profecia que se cumpre, à força de tanto a desejarmos, lia-se uma frase que, porque eu queria, me julguei ser dirigida. A mensagem aparecia assinada, mas quis o vento (e o destino, pensei) que o lençol se dobrasse estrategicamente após a primeira inicial, ocultando as restantes letras. O vento balançava aquela frase naquele viaduto, tal como a minha vontade a fazia oscilar em mim, todo dia…aquela inicial: C.
Era, no mínimo contraditório (para não apelidar de insano), eu “julgava sofrer por não ser amada e no entanto sofria, porque julgava sê-lo” (R. Barthes). Eu desejava ler naqueles proto-sinais um “fica... não vás... amo-te”. Felizmente (ou não) deixei-me estar, convicta de que a comunicação deveria escorrer por outros canais que inequivocamente me fossem dirigidos. Como tal não acontecia, enchi-me de coragem (ou simplesmente perdi o medo de ser ridícula) e, no dia seguinte à noite, estacionei na rotunda à espera que o vento me acompanhasse naquele exercício de desocultação onde, amargamente, um Custódio qualquer se revelou apaixonado…

Conhecendo-me um pouco, sei que um “ele ama-me” vagamente intuído em cantos dispersos do quotidiano, onde se catam olhares, gestos e palavras, não me basta. Sei que, a partir desse ponto, mergulharei na espiral da quantidade: "porquê só um pouco, como é que só me ama um pouco? Eu disse gosto muito de ti e ele diz eu só gosto de ti”… Seguindo-se a vertigem nominalista, “se ama, por que é que não o diz de uma vez por todas?”

Neste processo, o estado de espírito que em mim se instala assemelha-se ao acto de acampar. Acho graça ao terreno irregular da ambiguidade, onde tudo é periclitante e a pedra onde as costas insistem em assentar não nos permite ter uma noite de sono tranquilo e retemperador. Mas só aprecio (e não muito, devo acrescentar) durante um período muito limitado de tempo. A partir de então, quero mesmo é a caminha do hotel, com lençóis, água quente, sabonetinhos e tv por cabo. Mas isso, sou eu, que já percebi que não me sinto feliz numa tenda de campismo. Claro que perco, segundo os entendidos, os prazeres da natureza, da mobilidade, de ser económico, etc. No quarto de hotel onde agora me encontro instalada, estou sozinha. O single sai comparativamente muito mais caro do que o duplo. Provavelmente, encontraria, com alguma facilidade, tendas, iglos e roulottes para partilhar. Mas, por preguiça, comodismo, hedonismo (é só escolher), agora, acho que prefiro assim.

Optar, escolher, implica sempre perder alguma coisa. Sabendo o que se perde, não há que ter medo, nem pena de o fazer. Se é campismo selvagem que queremos fazer, pois, então, vamos lá. Mas vamos e estamos, enquanto quisermos lá estar, enquanto acharmos que ali há algo por que vale a pena dormir mal e andar sujo. Quando se lá está, mas a sonhar com o Ritz, então mais vale pegar na mochila e procurar algum conforto na residencial ou pensão familiar mais próxima.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Vira ou segue em frente

Já fui deixada pelo caminho algumas vezes. Naturalmente, também já fui abandonando algumas criaturas na berma da estrada. No apertado e desconfortável veículo de comunicação que, das primeiras vezes, se habita e se procura partilhar, nem sempre se chega a bom porto. Refiro-me aos contactos iniciais, aos preâmbulos da imagem que construímos do outro, onde tudo se cata, tudo se pesa e se avalia. Com a experiência de algumas viagens e, sobretudo, de promessas de jornadas que não o chegam a ser, comprime-se o tempo dedicado à primeira avaliação do suposto companheiro de navegação. Não sei se é a capacidade de medir o outro que se aprimora ou se é paciência que se esboroa aos poucos. A verdade, é que percebo (ou acho que percebo) com cada vez mais facilidade, após alguns lampejos de comunicação, se há possibilidade de peregrinar em conjunto, ou não.

Houve alturas, em que, querendo prosseguir viagem, fui percebendo que do outro lado a vontade não era idêntica. Provavelmente (muito provavelmente), já fui a gaja chata que não se enxerga e não descola. Contudo, dentro das minhas limitações interpretativas, sempre que descortinei que a querença (e a crença, também) do outro não coincidia, naquele ponto, de estar ali, comigo e prosseguir. Então, parti ou escancarei a porta para que, quem assim o desejasse, partisse. Quem já viajou guarnecido de companhia, sabe que não é possível ir muito longe com quem não comunga de uma idêntica disposição de descoberta. Por isso, sozinhos apenas estamos se assim o decidirmos e mal acompanhados também.

Não raras vezes, essa partida é acompanhada de uma certa depuração dos sinais do ex-viajante do veículo. Em tempos de comunicação mediada telefonicamente, e concluída a impossibilidade de estabelecer mediação, portanto esvaído o significado, apaga-se também o significante da lista. Este processo, para mim, é muito pessoal, muito íntimo, é o círculo fechado e autocrático, onde, senhora de um incomensurável poder, decido (ou, pelo menos, penso que decido) quem entra e sai da minha vida. Nunca me ocorreu panfletar a decisão, submetê-la ao escrutínio de terceiros e muito menos dos visados.

Ora, o inverso já me aconteceu algumas vezes. Desta última vez, detive-me a pensar um pouco mais no assunto. Tínhamos falado algumas vezes no Messenger, não muitas, porque não sou grande apreciadora do instrumento. O meio faz a comunicação e a minha onda é mais da co-presença (que é como quem diz fronha-to-fronha), portanto, saímos uma vez, para tomar o café da praxe e, enfim, conhecermo-nos. A introdução bastou-me para compreender que não queria ler mais capítulos. Precipitado? Talvez, mas ao contrário de um livro, que eu decido não ler, uma pessoa, no caso ele, tem sempre margem de acção para me convencer do contrário e conduzir-me a acreditar que ali, está uma história que, por vários motivos, vale a pena ser lida. Neste caso, não foi isso que aconteceu. Eu não quis ler e, com excepção de algumas sms de fazer sala, ninguém me convidou a deixar de ser analfabeta.

Perante isto, foi com algum espanto que o meu telemóvel me informou, com inesperada mágoa, que: “Tendo em conta que não existe reciprocidade… vou apagar o teu contacto. Boa continuação e um bjo
Ehhh, atão, tá”, pensei eu. Ainda por cima, sempre embirrei com a expressão “continuação”, nunca percebi, continuação de quê? O que só me levou a confirmar a decisão que já se havia cristalizado. Bom, mas se comunicação de apagar o contacto me surpreende, a sua não concretização já me exaspera.

Hoje, tinha um e-mail que se arrastava nos porquês que eu não havia fornecido para justificar a minha ausência (!!!), “não era por nada, era só por curiosidade e tal”. Mais, acrescentava que caso eu não respondesse, se veria forçado a diminuir a sua consideração (!!!) por mim. Lá respondi, tal como lhe expliquei, não movida pela redução da minha consideração no seu considerómetro (que é coisa que evidentemente não me interessa), mas porque as questões, quando colocadas, merecem sempre uma resposta, sempre. E disse aquilo que, para mim (e se calhar, para mais alguém), é complicado por em palavras… não me senti minimamente impelida, motivada em pensar uma viagem contigo, em conhecer-te.
Fiquei a conjecturar sobre a situação… É evidente que a criatura simpatizou (ou lá o que é) comigo. É evidente que pensou que comigo se teria passado o mesmo e esperou, desejando que eu o contactasse, que eu resgatasse e o conduzisse pelos corredores do que o encantou em mim. E a ausência de reciprocidade a que ele se reporta, tece-se nesse reduto imaginário, nessa projecção da nossa vontade no outro. Eu falhei, porque não lhe devolvi essa imagem. Ele falhou, porque não percebeu que não ameaçamos sair do jogo, para ganharmos a simpatia da equipa e termos o capitão a pegar em nós pelo braço, “oh, não vás, fica mais um bocadinho”. Não se anuncia uma partida, acalentando o desejo contrário. Ou resolutos e (mais ou menos) dignos vamos embora, sem olhar para trás. Ou ficamos, porque enquanto houver bola em campo e até o árbitro apitar, o jogo continua...
Foto: "Ou vira ou segue em frente" de Vieirinha

quinta-feira, 27 de março de 2008

Na caixa da glória

I'm so tired, of playing
Playing with this bow and arrow
Gonna give my heart away
Leave it to the other girls to play
For I've been a temptress too long
Just. .
Give me a reason to love you
Give me a reason to be ee, a woman
I just wanna be a woman
From this time, unchained
We're all looking at a different picture
Thru this new frame of mind
A thousand flowers could bloom
Move over, and give us some room
Give me a reason to love you
Give me a reason to be ee, a woman
I just wanna be a woman
So don't you stop, being a man
Just take a little look from our side when you can
Show a little tenderness
No matter if you cry
Give me a reason to love you
Give me a reason to be ee, a woman
Its all I wanna be is all woman
For this is the beginning of forever and ever

Its time to move over... ...


Hoje, ainda estou aqui, nesta Glory box… mas incapaz de deixar de brincar e dar a minha vez a quem quer que seja, ainda à procura de um you, porque a reason to love, eu já tenho...

quarta-feira, 26 de março de 2008

Viver (também) é recordar…


Ao contrário do que Vítor Espadinha proclama, não acredito que recordar seja viver, mas sei que viver também passa aí, por recordar… O concerto dos Portishead a que hoje vou assistir (sim, eu tenho bilhete para a plateia… há muito tempo) é também um exercício de nostalgia.

Dummy, o primeiro álbum da banda, foi meu primeiro Compact Disc e foi também o primeiro presente do meu primeiro namorado. Perdi a conta das vezes que em que me arrastei com aquela voz, pelas paisagens melancólicas, pontuadas por tonalidades cinzentas, ora escuras, ora expoentes exacerbados de luminosidade.

Em 97, tinha entrado para a faculdade e, entre os colegas de curso, destacava-se o N., inicialmente, por apenas me ter resgatado da massa anónima das restantes criaturas que por ali se juntavam. Aproximamo-nos de uma forma lenta, alimentada por horas de cafés e chávenas de conversas e por matinés de cinema que, sem dificuldade, se sobrepunham ao horário das cadeiras mais chatas. Durante muito, mas mesmo muito tempo, eu não percebi o que é que aquele homem descobria em mim que lhe agradava e que o forçava a ficar, a cativar-me. Na altura, ele era 8 anos mais velho do que eu. Naturalmente, hoje essa diferença cronológica é igual, mas há dez anos atrás, eu tinha apenas 18 e, perante ele, nada de relevante para contar, nada de essencial a acrescentar-lhe, o que dilatava distância a que dele me via.

Percebi há algum tempo que as pessoas por quem me enamorei partilham de algo em comum: a capacidade de me despertarem algum tipo de admiração. Há algo em todas elas que me maravilha e que me é estranho. Algo que eu considero inalcançável, inatingível, raro e belo. Algo que eu quero, que desejo, que anseio por incorporar em mim. No caso do N., esse assombro nascia no reduto intelectual, na erudição que eu lhe reconhecia, na capacidade que eu testemunhava de articulação de toda a sua experiência e saber para a produção de um sentido e de inteligibilidade do mundo.

Acho que nunca lhe disse isto, e duvido que ele suspeite, mas só muito recentemente, me sinto realmente de igual para igual numa conversa com ele, sem complexos, sem receios de me espalhar ao comprido numa imbecilidade qualquer. Não porque tenha deixado de ser imbecil e ignorante, mas porque percebi que, entre nós (como em todas as relações humanas autênticas) o que é nevrálgico, na intimidade que se tece, não é o conteúdo. Não é relevante o número de livros que se terá lido, os filmes que se terão visto, as viagens que se realizaram... A base do nosso entendimento residia na forma. No modo cúmplice como comunicávamos de improviso e sem pauta nos instalávamos como velhos conhecidos num sentido de humor partilhado. No riso, na gargalhada fácil que despertávamos no outro, a partir do elemento quotidiano mais banal ou a partir de um tabu, de um assunto interdito, de um acontecimento traumático e designado pelos outros como coisa séria, com a qual não se brinca… Esse era (e é) o ponto do nosso entendimento.

A partir daí, foi fácil concluir que estava apaixonada, mais fácil ainda reconhecer um desejo crescente, primordial e desconhecido que apenas o corpo poderia aplacar. Foi numa sessão do FantasPorto, Blue Velvet do David Linch na tela, e uma te(n)são que crescia entre nós como arame farpado, já doía estarmos próximos e não nos tocarmos. Esse foi o primeiro beijo e uma das maiores descargas de adrenalina, prazer e sensualidade que os meu lábios já testemunharam. A partir de então, as matinés de cinema viram-se trocadas por tardes de sol filtradas na janela do quarto, pela roupa amarrotada que enfeitava o soalho, pelo cabelo em desalinho que nos ligava, suados, exaustos e insaciados. Tenho uma imagem muito nítida de uma dessas tardes. Regressava a casa, no final do dia, num autocarro apinhado de gente remetida de locais de trabalho acinzentados e baços e acreditei genuinamente que teria de me esforçar para ocultar daqueles olhares inquisitivos, o brilho, a lúxuria e a felicidade que exalava do meu corpo.

Nesse verão, há dez anos, os Portishead vieram cá, ao festival do Sudoeste. As amarras parentais não me permitiram estar lá com ele, a ouvi-los. Recebi um postal que dizia “Nobody loves like you do”… Dez anos depois, sabemos que não foi assim. Mas, sei que houve um dia em que também o foi e isso é meu, intrínseco e indissolúvel…

To pretend no one can find,
The fallacies of morning rose,
Forbidden fruit, hidden eyes,
Courtesies that I despise in me
Take a ride, take a shot now.

‘Cause nobody loves me,
It's true,
Not like you do.

Covered by the blind belief,
That fantasies of sinful screens,
Bear the facts, assume the dye,
End the vows no need to lie, enjoy,
Take a ride, take a shot now.

‘Cause nobody loves me,
It's true,
Not like you do.

Who oo am I, what and why?
‘Cause all I have left is my memories of yesterday,
Ohh these sour times.

‘Cause nobody loves me,
It's true,
Not like you do.

After time the bitter taste,
Of innocence decent or race,
Scattered seed, buried lives,
Mysteries of our disguise revolve,
Circumstance will decide.

‘Cause nobody loves me,
It's true,
Not like you do
(Sour Times, Portishead)

terça-feira, 25 de março de 2008

Ressurreições

Imbuída do espírito milagreiro e ressuscitativo da época, a minha tese de mestrado emergiu do estado comatoso e moribundo em que se encontrava. Ainda se encontra ligada à máquina, não consegue respirar por si, revela algumas limitações de articulação, tem dificuldade em ser coerente do princípio ao fim do discurso, necessita de algumas transfusões de sangue teórico compatível (dadores já amplamente identificados). De acordo com o chefe da equipa cirúrgica (vulgo orientador), revela-se excelente na sua estrutura, necessitando apenas de um período de intensa terapia diária. Se a recuperação correr de feição, no princípio do mês de Maio, estará cá fora de boa saúde (até lá, reservo os meus serões e fins de semana a cuidar da pobrezinha).

quinta-feira, 20 de março de 2008

De bestial a besta

Um pequeno incidente de (in)comunicação ocorrido num barzito aqui, do burgo, fez-me relembrar a velha máxima que sintetiza a facilidade com que, no futebol (mas, não só...), passamos de bestiais e bestas...

Sábado à noite, eu, duas amigas e um amigo. Dois de um lado da mesa e os outros dois do lado oposto, cinzeiro no centro (sim, pode-se fumar) e muita conversa em circulação. Eu estava de costas para as restantes mesas no espaço, portanto, apenas via os dois amigos que estavam à minha frente.
Ora, à custa de andar a puxar a porra da mala pelas Lisboas e pelos comboios e pelos táxis e mais sei lá o quê, dei um jeito às costas que, nesse dia, praticamente me imobilizava (na realidade, é apenas velhice precoce localizada na zona lombar e, foi-se a ver, não era assim tão grave, porque nesse dia fiquei a dançar até às 7 da matina). Bom, ao fim de algum tempo procurando uma posição mais confortável (ou menos dolorosa, consoante as perspectivas), sou obrigada a voltar-me para as restantes mesas do bar e para o imberbe grupo de gralhas que estava mesmo ali ao lado. Ajeitado o reumático, verifico que dois miúdos desse grupo, me olhavam fixamente com ar divertido. O olhar era tão ostensivo que igualmente os fitei. Pois, para minha grande surpresa e estupefacção, um deles (por acaso, era o mais engraçadito... menos mal): inclina o tronco ligeiramente para a frente, esbugalha lentamente os olhos, encurrilhando a testa, entreabre os lábios e... PÕE A LÍNGUA DE FORA!
Eu observava-o agora com espanto, perplexidade e uma ponta de desprezo, enquanto pensava: "esta agora, o que é que o raio do puto quer?!?". O compincha da criatura, adivinhando o meu pensamento e percebendo que eu não falava "aquela língua", resolve traduzir: "ah, e tal... chamaste a atenção do meu amigo!”. Pois, claro, então não é evidente! Pedagogicamente, respondi-lhe, "Ah, está bem. Mas, devias pensar em domesticar o teu amigo primeiro, antes de o deixar sair à rua e interagir com pessoas”.
A custo (porque me doíam as cruzes), voltei-me novamente para a minha mesa. Breves instantes passaram e um zum-zum adensava-se nas minhas costas (e não era o reumático, que ainda não estou nesse ponto de chiar dos ossos). Voltei-me novamente, olhando as mesmas criaturas. Desta feita, era o mais engraçadito quem falava. O episódio incial provava que o gato não lhe tinha comido a língua, contudo, constatava agora que alguma coisa lhe havia carcomido a zona do cérebro responsável pela função linguística. Eu juro que prestei atenção, mas não encontrei a ponta do novelo daquele raciocício: “não sei quê, porque eu sou gajo, e eu tu fosses gajo eu falava contigo de outra maneira, mas como és gaja… porque se fosses gajo, como eu sou gajo, a gente resolvia a coisas de outra forma...”. Consciente das minhas limitações de género, declarei, “ok, se eu fosse gajo, tu falavas comigo. Mas, como vês, não sou. Por isso, é inútil prosseguirmos”.
Voltei-me para a mesa, passaram uns momentos e nova investida. De entre as vociferações que as criaturas proferiam houve uma que se revelou crucial: “ah e tal... és feia, és mesmo feia...”. Eu achei graça, mas curiosamente perante aquela frase os meus amigos mobilizaram-se (acho que não queriam ficar mal falados, com fama de se fazerem acompanhar por uma rapariga mesmo feia). Foi perante o único gajo que estava na mesa (que por acaso tem 1,90 cm) que ele se explicou e que eu fiquei a compreender:
Ah e tal, já estava aqui há algum tempo e a tua amiga chamou-me a atenção, achei-a, prontos, engraçada e gostava de a conhecer.”
Hummm, eu tenho andado um bocado arredada destas lides, mas desde quando é que por a língua de fora deixou de ter uma conotoção trocista e infantil e passou a ser utilizado como um cumprimento, um elogio (naturalmente, reporto-me à idade adulta, o jardim de infância e a escola primária não contam)?

É sabido que, no futebol, equipa que ganha, tem um treinador bestial. Mas, se a mesma equipa, com os mesmos jogadores e com a mesma táctica perde, defraudando as expectativas dos adeptos, o mister é indiscutivelmente uma besta. Já me tinha esquecido que no jogo do engate rasteirinho é a mesma coisa. Num espaço cheio de gente, há uma pessoa que, por algum motivo (bem, na verdade estamos a falar da vertente rasteirinha, por isso, normalmente não são os lindos olhos...) prende a nossa atenção. Se vamos até lá e a coisa corre bem: bestial. Se levamos para trás: ganda vaca, tem a mania qué boa, mesmo feia... Besta!

Como diria o outro "e eu qui sô ruim? eu qui sô mau treinadô?"

quarta-feira, 19 de março de 2008

Como nossos pais*

Diz que é Dia do Pai e eu vou dar um salto até casa dos pappis, abancar-me pó jantarinho e dar duas de letra com o velhote. Passar em revista os disparates semanais do governo, dizer mal do benfica (ainda quero ver o que é que ele acha deste achado que é o Chalana como treinador!), lamentar solidariamente a (mais que provável) descida de divisão do Leixões ('taditos, compraram um autocarro à séria pa fazer bonitinho na liga, mas é tão grande que eu desconfio que, na próxima época, quando voltarem a ir jogar à Rechousa e a Nogueiró dos Vinhos, a traquitana não deve passar pelas vielas esconsas).
Nunca chamei o meu pai de pai, chamo-o pelo nome. Sempre foi assim. Enquanto criança, os amigos perguntavam se era meu padrasto, ao que eu respondia: "não é o meu pai, mas chamo-o Zé, porque é o nome dele" (parecia-me tão evidente!!). Acho que nunca fomos próximos, íntimos, fluidos e totalmente autênticos um com o outro. A minha adolescência marcou um período de conturbada existência entre nós, apaziguado com frequência e com uma diplomacia que causaria inveja a qualquer funcionário das Nações Unidas, pela minha mãe (que chamo de mãe e nunca me ocorreu ser de outro modo).

Conservador. Acho que é uma das palavras que define o meu pai. Razão pela qual, quando transmiti a intenção de morar sozinha (escapando ao fado geracional de sair de casa dos pais para casar) pensei que seria decretado o "estado de sítio" da nossa relação. Nada disso! Perante o meu comunicado, ele apenas pergunta: "mas, vais viver com um companheiro?" (não sei como contive tamanha alarvidade de riso e gargalhada perante esta expressão, tão PREC... um companheiro, camarada, campesino...).

Desde então, o denso manto de neblina que separava e bloqueava a nossa comunicação foi-se levantando, permeabilizando-se a alguns raios de luz que o deixam ver com mais nitidez. Fica clara a sua aversão à mudança, mas também uma fidelidade canina à família e aos amigos, uma honestidade a toda a prova, uma existência colada aos princípios em que acredita, uma certa obstinação face à palavra e ao compromisso. Quando a minha mãe se chateava comigo, uma das piores coisas que ela me podia dizer era, "és igualzinha ao teu pai". Aquela frase arremessava-me de novo para o ponto zero, para um ponto próximo dele, de onde, eu achava que me queria afastar. Hoje, perante tal declaração, apenas sorrio. Se calhar, é mesmo muito provável que comunguemos de um mesmo património de carácter. Podia ser pior... podia ter herdado o benfiquismo (argh)!!

*De preferência, ao som de Ellis Regina
Foto: "Himba Tribes" de Nuno Lobito

terça-feira, 18 de março de 2008

Virar o disco

Ontem, foi o aniversário do meu melhor amigo, o L. Apercebi-me, durante o fim-de-semana, que ele providenciava telefonicamente os convites para o jantar. Fiquei surpreendida e muito satisfeita com essa iniciativa. Mas, percebi depois que havia compreendido mal o que ela significava.

O L não é muito dado ao chamado espírito de grupo, quando este é segregador de uma certa individualidade (e, em maior ou menor grau, estar em grupo implica sempre diluirmo-nos um pouco). A esta condição de base, soma-se a actual e ainda recente conjuntura de desemprego que lhe esvazia os dias, mas, sobretudo, tende a contaminar horizontes de projecção futura.

Por tudo isto, no ano passado, não me espantou quando ele alegou um “estado de neura temporário”, declarando não organizar qualquer espécie de reunião festiva. À socapa, eu fiz os convites, e no pacato sábado à tarde, em que dissecamos os jornais, temperando a leitura com vociferações e banalidades, os amigos convidados foram chegando ao café, até ele se aperceber da inevitabilidade do jantar. Foi bom, foi divertido, porque também foi inesperado para ele.

Ora, o que sucede é que o espírito de festa resiste ao prêt-à-porter e não se compadece com datas e horas marcadas. Por coincidência conjuntural, actualmente, há uma vaga de neura-depressiva que assola um conjunto alargado de amigos. Os motivos e as situações são diversas: uns estão enredados em relações infelizes que insistem arrastar, arrasando-se com elas; outros estão reféns de narrativas profissionais que, pela ausência ou excesso de substância, lhes minam a alegria; alguns acumulam estas situações.

O jantar estava marcado para as 20:30. Eu, para não variar, deixei-me atrasar, e cheguei por volta das 21. Verifiquei, com espanto, ausências injustificáveis pela relação afectiva que julgo existir. Fui perguntando por A, B, C e explicações diversas e ligeiras foram apontadas. O jantar decorreu sem grande entusiasmo, a partida fez-se anunciar com olhares nervosos para os relógios e telemóveis. Dos 12 no jantar, ficaram 4 para beber um copo. Dos 4, fiquei eu e o L. Dei comigo a equilibrar atabalhoadamente, numa mão, o cigarro e, na outra, o pesado balanço negativo que ele produzia sobre o jantar. Este jantar significava mais para ele do que eu poderia supor. A fragilidade que ele oculta numa postura que lhe é sempre idêntica: forte, vencedora, audaz, determinada, pedia agora por colo, por um abraço colectivo. Essa mensagem, ele não a passou da melhor forma. Mas, por outro lado, parece-me que esta gente estaria demasiado embriagada na sua infelicidade e miséria para perceber.
Em inúmeras situações da minha vida, eu sou “esta gente”, bêbada de egoísmo e desventura. Nessas circunstâncias, acho que nunca me detive muito tempo a pensar na real importâcia da minha ausência para com os outros. Eu encontrava-me refém do infortúnio e padecia de uma espécie de síndroma de Estocolmo, identificando-me e criando fortes laços de estima com a dor que me havia sequestrado do mundo. A dada altura, libertar-me dependia só de mim, contudo tornava-se paradoxalmente doloroso abandonar aquele reduto familiar e confortável de lástima e de miséria.
Mas, ontem magoou-me ver o meu amigo triste, saudoso dos amigos "raptados", a extrair palavras hesitantes de si para exprimir a custo o que sentia, quase envergonhado por falar das expectativas goradas naquele jantar. Senti uma impotência (que imagino) quase maternal, perante alguém que se ama e que se quer cuidado e protegido e que ainda assim não é possível imunizar da dor que os outros, por vezes, teimam em lhe infligir. Da dor que, tantas vezes, por negligência e leviandade devo ter infligido. Quanta desatenção é desigualmente distribuída. Quanto descuido. Quanto desamor face àqueles que não nos falham, que estão ali e que, às vezes, gritam, “hoje, preciso de ti, preciso de um abraço”. Mas, esse grito não é audível porque, a infelicidade destila a sua melodia, em estilo black metal, na aparelhagem que lhe emprestamos, equipada com stereo e dolby surround...

Foto: "Lagoa do Vento I" de DDiArte

segunda-feira, 17 de março de 2008

Viagens na minha terra: entre a cesta e a samsonite

Desde que tenho memória que os locais de viagem me fascinam: aeroportos, gares de comboio, etc. Deslumbra-me a ideia de um território que se define como passageiro, transitório e efémero no (des)encontro que promove. Marc Augé, fala de não-lugares para designar os espaços de passagem, a terra de ninguém da identidade, onde nos une e nos isola a condição de viajante.

A minha memória das viagens de comboio remonta aos tempos de infância. As férias (na altura, mesmo, grandes) previam um mês passado na aldeia dos meus avós, em Trás-os-Montes. A viagem era antecipadamente planeada e os dias de partida e de chegada estruturalmente desenhados em torno do autoritário horário do comboio, avivados intermitentemente pela minha avó: “ele não espera por nós e se o perdemos, ficamos em terra” (expressão curiosa a utilizar para um transporte sem mar à vista). O receio de “o perder” fazia sentido, porque a frequência de comboios não abundava (situação que hoje ainda se mantém). Mas, mais grave, não cumprir com esse horário significava hipotecar o precário equilíbrio que se havia planeado com o horário da carreira que era necessário apanhar em seguida. A carreira era o autocarro velho, que apenas por protocolo tácito com a morfologia escarpada do percurso acedia em não se despenhar nos socalcos vinícolas, conduzindo-nos ao longínquo destino na montanha. Dessas viagens, retive uma imagem construída e reconstruída dos viajantes: mulheres com buço, vestidas de negro e lenços na cabeça, acompanhadas de invariáveis cestas de onde espreitavam hortaliças e de onde se desprendiam odores animais. Pesava na cesta e nesse percurso a ignorância e o analfabetismo com que fitavam o encriptado painel (mais ou menos) electrónico onde se a anunciavam as linhas, os destinos e os horários de partida, “oh, menina, pó Porto, que comboio é?", acumulavam-se nas filas da bilheteira com a confusão de quem não se explica.
As férias na aldeia deixaram de acontecer há muitos anos. As viagens de comboio tornaram-se mais frequentes e tomaram outros destinos. Nos entretantos, muita coisa mudou na fachada e no funcionamento das gares e estações de embarque. Ainda assim, a imagem das cestas não se dissipou. De vez em quando, nos contextos mais inesperados, ela dá sinais de si...
Na gare do Oriente, sexta-feira ao final do dia, tal como muita gente, encetava a viagem de regresso ao Porto. Na plataforma, juntavam-se pessoas cujos trajes e semblantes se assemelhavam, denunciando a pertença a profissões mais ou menos qualificadas e técnicas – pessoas em trânsito profissional. Foi entre "dôtores e enginheiros", PDA’s e telemóveis de última geração, que uma voz feminina, agradável e, curiosamente, perceptível (demonstrando a extinção da tradicional e nasalada advertência “o comboio procedente de Lisboa Santa Apolónia, com destino a Porto Campanhã, vai dar entrada na linha número 1, efectua paragem em, blá, blá, blá", da qual apenas era possível decifrar pequenas sílabas que se alinhavam mentalmente num puzzle em que faltavam peças) explicava agora pedagogicamente que o comboio das 19 horas teria duas composições: na linha 1, entrariam as carruagens 1 a 6 e, na linha 2, 4 minutos depois, seguiam as carruagens 7 a 12. A mesma voz pedia com insistência que os senhores passageiros conferissem o número da carruagem no respectivo bilhete e se dirigissem para a linha correspondente. Explicou uma vez, duas, vezes, três, vezes, quatro vezes (nesta altura eu já sabia de cor o relambório da moça). Finalmente, dá entrada a primeira composição, carruagens 1 a 6. E eu, esquecida de um país de cestas que não decifrava um painel de informação, verifiquei estarrecida a confusão analfabeta e ansiosa das Samsonites e dos laptops que se atropelavam na busca infundada da carruagem 7, 9 e 10 ,que só partiria daí a 4 minutos na linha contígua. "Oh, menina, pó Porto é este comboio, não é?"
Mudam-se as cestas (com sorte, rapa-se o buço), mas algo insiste teimosamente em persistir…

terça-feira, 11 de março de 2008

Lxxxxxx

Diz que vou para Lissabonne uns dias, ver moços... quer dizer, trabalhar: MUITO! Chega a ser anedótico, vou dar formação, nada mais, nada menos do que: Gestão do Tempo! Eu e gestão do tempo. Bom, também não é tanto assim. Na verdade, sendo uma dimensão em que falho constantemente (horários, prazos, etc), há muito tempo que me procurei endoutrinar e munir das técnicas, instrumentos, estratégias, etc., para enfrentar essa situação. Na prática, não sou muito eficaz, mas na teoria sou o Cristiano Ronaldo dos cronogramas e do planeamento (embora, eu renda mais sossegadita a dormir...).
Não me apoquenta e lido bem com esta dissonância: "bem prega frei tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz"

segunda-feira, 10 de março de 2008

Degraus na longa escada da compreensão

Neste espaço onde não me coíbo de mim e onde o encontro se combina nas esquinas das palavras, também me escondo, também me oculto, também me atraso e também falto ao compromisso. Nestes dias, e até hoje, eu teria sempre algo a acrescentar sobre ti… Mas eu não quero, porque não sou totalmente capaz de esmiuçar e desgastar os nexos explicativos para a dor e para a perplexidade que, também aqui, tenho tentado aplacar. Por pudor, por vergonha, mesmo para mim, é difícil apresentar, redigir e digerir completamente a didascália desta acção. Mas a verdade é que se me distanciar, se me vir como personagem desta história: faz algum sentido. Porque já vivi outros amores, já sofri noutros lugares, tive a pretensão de achar que aos 28 anos, já tinha percebido como é que isto funciona. Eu já tinha tirado de letra esta coisa das relações. A mim, já ninguém me apanhava em falso. Eu não dizia isto, mas acho que era o que pensava… E aqui, vejo a Vida com um ar matreiro e sabido, numa esplanada lânguida com sol e gins tónicos, a decretar preguiçosamente a reposição da ordem cósmica do reconhecimento e das ignorâncias: "ah, então tu pensavas que sabias tudo… espera lá…"

Às vezes, dizias-me, “gostava de te ter conhecido antes, gostava de te ter conhecido quando estava bom”. Essa frase… essa frase plantava em mim sensações tão díspares, sentia-a, ora como um elogio, ora como um insulto. Às vezes, dava-lhe algum seguimento, imaginando como é que seria? E a verdade, é que foi pela forma como agora caminhavas até mim que permiti que te aproximasses. Eu dizia-te, e dizia-me vezes sem conta, que essa condição nada influenciava… Mas mentia… Essa condição perturbava tudo, porque essa diferença me deslumbrava, turvando e ocultando tudo o resto e distraindo-me de ti. Porque era a prova visível da aprendizagem que tu inevitavelmente terias realizado, o catalizador irrefutável para a mudança que tu terias operado (transformação em que, na generalidade, eu nem sequer acredito ser possível, porque, no essencial, as pessoas não mudam). Tentava imaginar-te antes e (especulativamente, bem sei) não era capaz me ver a nutrir mais do que um leve desprezo pela tua bela aparência oca e desprendida. Ao antes-de-ti eu já tinha sido apresentada e do antes-de-ti eu também já tinha descoberto que nada haveria a esperar.

Aprendi por mote próprio que não se deixa para amanhã o que se pode gostar hoje, aprendi que não ocultamos quem amamos das pessoas que nos rodeiam, aprendi que todas as manhãs são poucas e todas as noites demasiadamente curtas para não as partilharmos com quem amamos, aprendi que não nos afastamos para nos resolvermos, apoiamo-nos nas pessoas que amamos para nos tornarmos mais claros, mais nítidos e melhores. Aprendi com o corpo, com as lágrimas, com a dádiva e com a dor. E achei que já sabia...
Mas, agora, tu deslizavas até mim, corporizando uma realidade que me era tão estranha e que eu não ousava questionar. Esse era o reduto justificativo onde te apoiavas agora para te afastares, como sempre o fizeras, embora invocando outros pretextos.
E eu, ainda com tanto para aprender, a achar que já tinha percebido tudo… E, eu tola, a achar que não me poderias magoar, não tinhas como… Tu não tinhas pernas, mas sim asas para me proteger como um anjo. Tu não tinhas maldade, apenas sofrimento e gratidão no olhar. Tu conduziste-me ao engodo primordial nas pesquisas que fiz, a fim de te perceber melhor… a tua deficiência é emocional e não tem rampas à vista.


Foto : Sem Título, Rosalina Afonso

A supertrampa

Domingo de neura. Jornais lidos. Rumo ao cinema. Sala composta. Filme: Into the Wild

E se um jovem de 22 anos, bem parecido, bom aluno, com uma situação social e económica confortável, dissesse "eh pá! isto da materialidade das coisas é muito sufocante". Asceticamente, prescinde da sua família, do seu dinheiro e de todos os seus bens materiais e enceta uma jornada rumo à descoberta de si, rumo à purificação, rumo à felicidade. Apelida-se Alexander Supertramp e pela estrada fora ele vai. Terra acima, terra abaixo, terra acima, terra abaixo, terra acima, terra abaixo (ehhhh, que sono! é que o percurso dura 140 minutos). Pelo caminho, vai conhecendo um pessoal, mas ele não se desvia do propósito e prossegue, prossegue, prossegue… até não conseguir avançar mais. Morre, não sem antes concluir: Hapiness is real when shared. Irra que o Siddharta suburbano é um bocado lerdo (como se não bastasse, inspira-se em factos reais)!

sábado, 8 de março de 2008

Fragmentos encontrados

Há alguns anos, descobri esta pérola num alfarrabista do Porto (a capa era outra).
Hoje, em limpezas e arrumações caseiras, foi ele que me descobriu a mim, como que adivinhando um estado de espírito mais dotado de renovados e íntimos fragmentos de compreensão do seu conteúdo.
Na minha contracapa, reza assim:
"Dois poderoso mitos fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se em criação estétita: o mito socrático (amar serve para criar uma multidão de belos e magníficos discursos) e o mito romântico (produzirei uma obra imortal escrevendo a minha paixão" (Roland Barthes)
Até ver, fica em posição de destaque na mesinha de cabeceira...

sexta-feira, 7 de março de 2008

Nem a ocasião faz a oposição

Não era necessário ser o Gabriel Alves da arena político-partidária portuguesa para prever que Luís Filipe Menezes não seria grande espingarda como líder do PSD. Agora, o que ninguém poderia imaginar é que seria assim tão MAU...

O povo afirma que "a ocasião faz o ladrão" querendo com isto ilustrar a primazia das circunstâncias sobre a (potencial) virtude das acções dos indivíduos. A actual ocasião, de crescente crispação social, de acumulada e generalizada insatisfação com o rumo que o país leva (ou o "mal-estar difuso", expressão eufemística e cronologicamente desfasada utilizada por uns senhores da SEDES - diz que são dôtores e botam boa faladura...), seria terreno fértil para (independentemente da virtude dos indíviduos) lançar as bases de sólidos argumentos de oposição às actuais políticas de governação. É que da maneira como as coisas vão, nem era preciso muito esforço, nem era preciso acreditar de facto nesses eventuais argumentos, era apenas necessário que existissem... Mas não, diz que não, e o timoneiro do principal partido da oposição explica porquê:

"Há um paradoxo. É que, da mesma maneira que o PSD ainda não merece - vai merecer - ser Governo, o PS já não merece ser Governo. Portanto temos aqui um vazio complicado, que o maior partido da oposição vai ter de resolver rapidamente merecendo ser Governo" (in TSF Online)

Hummm, com que então há um paradoxo ?! (eu não sei, mas se procurarmos bem até encontraremos mais do que um) Hummm, com que então uma crise de diz-mereço-mais-do-que-tu para resolver?! Ora bem, isso ainda pode levar algum tempo... alguém carrega no botão do pause do país, enquanto os senhores disputam a crise de mérito?

quinta-feira, 6 de março de 2008

Perenidades temporárias

As marcas da tua cadeira ainda jazem na parede da minha sala. Estão lá. Fossilizadas. Testemunhas mudas de um amor estridente que outrora fizemos. Ainda não as consegui apagar. Ainda não me consigo ver munida de lixívia e pano em riste a esfregar esses sinais. A lutar com esses vestígios já tão distantes de ti. A branquear esses resíduos que provam que não enlouqueci, que não me limitei a sonhar a tua presença.
Não me desfiz do vestido que me ofereceste num aniversário que parece já tão longínquo. Depositei-o num saco, destinei-o à lixeira com os demais detritos que a vida de todos os dias produz. Mas, ainda não fui capaz, porque esse não foi um vestido de todos os dias. Foi o vestido do dia em que me presenteaste, provando saber o meu tamanho de cor. Provando saber que eu te queria, sabendo-me mulher, sabendo-me tua, sabendo-me o corpo medido nas unidades das tuas mãos. Foi o vestido de um jantar com velas que te preparei com o desvelo de uma dona-de-casa, que já não é dona de si. Foi o vestido que, com dúvida, afastavas metodicamente para confirmar o que sabias desde o princípio: o meu corpo sedento do teu.
Ainda não me imagino a aprender outro corpo. E para o fazer tenho de manter esse vestido. Aguardando o dia em que ele me permita eleger novas mãos. Aguardando o dia em que ele já não se sinta traído e desrespeitado porque uma outra dúvida o aparta. Aguardando o dia em que seja possível inscrever novas marcas, provas irrefutáveis do fim… de um capítulo, porque Fukuyama estava errado, a História não termina.

Foto: "Rugas" de Maria Isabel Baptista

quarta-feira, 5 de março de 2008

Bonito serviço...

Decidi interromper o ritmo tresloucado de trabalho em que havia enveredado nas últimas semanas. Houve um colega que arranjou melhor poiso e foi-me proposto ficar o trabalho dele… continuando com o meu, claro… ganhando o mesmo, claro! Mas há umas semanas a necessidade de preencher as manhãs, as tardes e as noites (e de me esvaziar de mim) era tão grande que nem pensei duas vezes antes de aceitar. Bom, sair desta chafarica às 10 ou 11 da noite começou a ser a regra e os mais próximos questionavam se me tornaria uma workaholic. Eu bem gostava, acho chique a valer e muito fashion… Mas não, só me vicio no que é bom e esse risco eu sabia que não corria. Meu dito, meu feito. Ontem percebi que esta carga de trabalho não se resolve tão cedo e que haverá sempre mais dias (in)úteis... Portantos, ontem à minha horinha rumei para a aula de ioga. Chegada a casa com os chakras alinhados (mas com uma valente dor nas cruzes), preparei uma espécie de jantar e abanquei com o tabuleiro no colo. Ligo a televisão que, por defeito, se inicia sempre na RTP 1, e tcharam:
"Quem quer ser milionário?" Perguntava o Jorge Gabriel. "Eu, eu", respondia o moço de Vila do Conde. Pois bem, então a pergunta é:

“Amélia e Amaro são personagens de qual dos livros de Eça de Queirós?
a) Primo Basílio
b) Os Maias
c) O crime do padre Amaro
d) A Relíquia”

Moço: Ehhhh...
JG: (levanta o sobrolho) Conhece o Eça de Queirós?
Moço: Ehhhh...
JG: Conhece algum destes livros?
Moço: Ehhhhh… uma pessoa fica nervosa aqui… Ehhh. Vou ter que pedir ajuda.
JG: (não contendo o lapsus facial de espanto) Vai pedir ajuda?!
Moço: Vou telefonar à Nelinha.

Moi: (já a falar sozinha) Oh, valha-me Deus… Onde é que está o comando?!


50 anos de Serviço Público? Sim, definitivamente na:



terça-feira, 4 de março de 2008

Lições de mercado...ou porque não há almoços grátis

Aos poucos, de volta ao mercado, ainda só para sentir como param as curvas (de oferta e de procura, claro…), convenço-me que a coisa não vai lá só à força da mão-invisível. É urgente uma entidade reguladora, um provedor, uma polícia especializada, um FMI, um tribunal vocacionado para este tipo de contendas.

Situação 1 – Meter conversa

a) Tentativa de meter conversa numa discoteca cá do burgo. 2 predadores a cercar território, com lenta aproximação física. E vai o mais feiinho:
Feiinho - Olha, oghxoçrugxoçrg…
Moi - Desculpa, não percebi!
Feiinho - Queria perguntar se te podia apresentar o meu amigo? (e o amigo, mesmo ao lado espreita e sorri com ar de totó)
Moi - Ah! Acho que não.
Feiinho - Oh, mas porquê, ele é muito bom rapaz, sabes? (ri-se satisfeito com a graçola)
Moi – Ah! Acredito, acredito.
Feiinho – Então, por que é não to posso apresentar?
Moi – Porque para me apresentares o teu amigo, terias de me conhecer primeiro, não é?

Lição 1: Já não temos 15 anos... E meter conversa é um core business que não admite outsourcing.

b) Ficando sozinha na mesa de um barzito, quando os amigos se ausentam para abastecer a copofonia.
Desconhecido – Então, olá.
Moi – Olá.
Desconhecido – Não te lembras de mim?
Moi – Não.
Desconhecido – Mas, não te lembras porque não tens memória ou porque não te queres lembrar?
Moi – Se calhar, não me lembro porque não nos conhecemos, de facto, não é?

Lição 2: Se quer fidelizar clientes, não aposte num plano de marketing intrusivo à la-banha-da-cobra, sobretudo, se não tem capacidade argumentativa para o desenvolver.

Situação 2 – Os cafezinhos, jantarinhos e outros inhos...

a) Cafezinho da praxe, com uma personagem que gere activos, mercados de risco e outras coisas não tangíveis e sobre as quais eu não percebo um chavelho (e quero continuar a não perceber). Segue o guião habitual: atão e como é que é teu trabalho, atão e como é que… tutti, tutti, tutti… a dada altura:
Moi - E filmes também sacas da net?
Gestor - Ah só alguns… Tenho poucos… Só mesmo os filmes da minha vida (eu devia ter suspeitado da expressão tão Lauro Dérnio)
Moi - Ah! Então e quais são?
Gestor - Ah, e tal, tu não deves conhecer?
Moi - (confesso, aqui ocorreu-me a produção cinematográfica do Sri Lanka, Kuala Lumpur, Gronelândia) Mas, passo a saber. Diz lá.
Gestor - Então, o Cinema Paraíso
Moi - (Toing) hum, sim, conheço.
Gestor - Este se calhar não conheces mesmo… É antigo
Moi - Sim
Gestor - Francês
Moi - Sim
Gestor - Há festa na aldeia.
Moi - Do Jacques Tati, sim.
And so on, and so on…

Lição 3: o Mercado não é alheio às dinâmicas homo e heterogeneizantes da globalização. Portantos, não ignoremos as suas especificidades. Com todo o respeito, mas nem tudo se resume e cabe num blockbuster perto de si.

b) Já na base do jantarinho com "amigo" escandalosamente giro e obsessivamente bem esculpido com quem disserto sobre as vantagens do diálogo sobre a violência física (ah, tem uma empresa de segurança e estórias hiper suculentas de quando trabalhava nas portas dos bares e discotecas cá da zona):
Segurança - E então o que é que vais pedir?
Moi - Nã sei… Hum, acho que vou no entrecosto.
Segurança - Isso é porco?
Moi - Sim, é porco, porquê?
Segurança - Iac, não como porco.
Moi - Mas, porquê és muçulmano?
Segurança - Não.
Moi - Não gostas? (confesso que aqui pensei que se seguiria um diálogo à la Pulp Fiction: porks are fielthy animals...)
Segurança - Não é isso, faz muito mal.
Moi - Pois, viver pode trazer danos irreparáveis à saúde (disse eu, com ar de gozo).
Segurança - E às mulheres então… vai tudo para coxas e para o rabo (diz ele, com ar sério).
Moi - (Toing) É bem possível...

Lição 4: O que vai para as coxas e para o rabo sou eu que decido e tu, definitivamente, não. Onde é que ficou a máxima do cliente tem sempre razão. Humpf!!!

c) Bom, como este espécime é mesmo muito apetecível (quando está calado) pensei em insistir. 2º jantarinho, chegamos à fase da arqueologia do mulherio:
Moi - Ah, e então acabaram?
Segurança - Foi, porque ela bebia muito e também fumava (a gande vaca, pensei eu que ele pensava). Olha como é que ela ficou. (rapa do telemóvel e vai de mostrar)
Moi - Ahh.
Segurança - E então, conheci a blá-blá-blá, e acabamos.
Moi - Ah foi?
Segurança - Ela queria sempre discutir muito (rapa do telemóvel e vai de mostrar)
Moi - Ahh.
E continuou… ao ponto de eu achar que aquilo não era um telemóvel, mas sim um mini-buraco negro em frames...puff!

Lição 5: A referência ao percurso histórico (ou seja, ao mulherio anterior, faz-se na base do tópico, da súmula). Digamos que é apenas um Curriculum Vitae Síntese... se não são artistas, nem designers, o mercado dispensa o portfolio.

De modos que é assim, o mercado tá flat...

segunda-feira, 3 de março de 2008

Salteando Salteadores alheios

A minha incursão nestas lides blogosféricas é muito recente e avançou quase em simultâneo como blogautora (expressão algo pretensiosa para designar os garatujos verborreicos que aqui vou depositando) e como blogleitora. Descobri que os blogs são como as cerejas, porque a partir de um, fui descobrindo outro, que depois me conduziu a outro e por aí fora… Nesse percurso, fui coleccionando alguns espaços de eleição e de visita obrigatória, que (quais Kosovos e Países Bascos) conquistaram foros de autonomia e autoproclamação na minha agenda diária.

Gosto desse passeio por jardins, salas de estar, quartos e cofres criados por pessoas que desconheço e que me atraem pelo sentido de humor, pela sensibilidade, pelo arrojo, pela partilha e identificação com algumas situações, pela inquietação e interpelação que promovem, etc. Vou-me descobrindo e revejo-me (de maneiras muito diferentes) nesses espaços por onde deambulo. Hoje, não foi diferente. Passei por todos eles. Mas, hoje encontrei-me aqui, de uma forma tão nítida, tão definida, tão perplexa e tão inquietante... Li, reli, voltei a ler e, ressalvados os devidos direitos autorais, não resisto a apropriar-me aqui deste pedaço de escrita, uma vez que estas palavras hoje irromperam em mim (sem pedir licença), assenhorando-se do meu estado de espírito.

Lê-se assim, Controversa Maresia

o salteador dos afectos perdidos

É um tipo de homem que faz alguns estragos. Provoca sentimentalmente as mulheres, da mesma forma que estas (algumas delas) provocam sexualmente os homens: com empenho, persistência e gozo. Tem geralmente uma vida sem detalhes amorosos relevantes; não porque não tenha quem goste dele (aliás, é geralmente uma pessoa adorada), mas porque é incapaz de retribuir o amor na mesma medida. Sente-se afectivamente incompleto e sabe que o defeito está nele pelo que, como um vício, alimenta-se da paixão que induz em outras mulheres na esperança de que alguma um dia o preencha. Ateia chamas como um pirómano no pico do Verão; provoca um fogo de cada vez, numa mata criteriosamente escolhida e na qual se insinua, rasteiro. Acende uns fogachos aqui e ali, em várias frentes, até lhes ser difícil, a elas, combaterem o fogo todo de uma vez. Provoca amiúde verdadeira devastação e um rescaldo que se prolonga no tempo. Porque ele nunca se envolve e sai de cena sempre a meio; e não dá nada de si parecendo que se entrega inteiro (porque tem pouco para dar, na verdade, quase nada). Quando se apercebe da seriedade e empenho do sentimento alheio, retrai-se e tenta várias estratégias. Uma (a mais frequente e cobarde) é recorrer ao humor e à ligeireza: tenta brincar com o monstro que criou, transformá-lo num gatinho inofensivo, para que não se torne numa ameaça. Isto tende a confundir aquela que, enquanto ainda arde, não percebe a razão de tais baldes de água fria. Por forma a manterem a face, elas alinham no jogo e, se não lhe respondem na mesma moeda (porque por enquanto não conseguem: aquilo queima), fingem que ele está efectivamente a conseguir apagá-las e acabam por aceitar o lugar de canto para onde são relegadas. A seguir, dá-lhes a entender que foram elas que interpretaram mal os sinais, numa cerimónia de transferência de culpa. Aceitam-no, por fim, como amigo e renegam quaisquer recordações de algo mais, com vergonha de estarem a ultrapassar a linha invisível que ele lhes traçou. Este tipo de homem é perigoso porque deixa nas mulheres por quem passa um sentimento de pendência que se prolonga no tempo, uma sensação de qualquer coisa por resolver e de incompletude emocional, uma necessidade de encerrar um ciclo, de voltar atrás e de remediar as coisas, talvez vivenciando-as de facto. Pode tornar-se numa obsessão, sem o saber. Mas não se pense que as mulheres que seduz são vítimas inocentes, nada disso. Geralmente comprometidas e com filhos (para que fiquem sempre com um pé preso noutro sítio e não se aventurem demais), são, não tanto carentes de afecto, mas mais carentes de um pouco de aventura nas suas vidas planas. Sabem no que se estão a meter e julgam que o risco compensa. Ao princípio, existe de facto uma satisfação mútua que se traduz num fino equilíbrio de vontades e numa consciência comum dos limites. Quando acaba o entusiasmo (através do tal fim subtilmente induzido por ele), resta-lhes geralmente uma amizade distante, à qual de vez em quando aflora a excitação antiga. Só há um azar susceptível de comprometer esse equilíbrio: a perda do sentido de exclusividade, pois cada uma se reconforta no facto de ter sido única . É este sentido, o de último reduto, de once in a lifetime, que sustenta o risco e que o justifica, que faz tudo ter valido a pena. Se, por manifesta estupidez ou desleixo dele, elas descobrem que assim não é, que foram apenas uma peça de um jogo que se repete, desmorona-se o precário edifício de afectos que vinham confabulando, o que pode ter consequências imprevisíveis. Isto porque a simples constatação de que o salteador irá uma vez mais ficar impune e passar incólume é pura e simplesmente inaceitável. Aquilo que alguns classificam desdenhosamente de despeito, muitas vezes mais não é do que a vontade de repor a ordem cósmica das coisas. E, convenhamos, não há melhor combustível para a vingança do que a unilateralidade das lágrimas (mesmo daquelas que já secaram há muito).

Às vezes, há textos que nos deixam assim:

.... despudoradamente nus e vulneráveis...


Foto: Sem Nome, Cristina Bento